quinta-feira, 23 de maio de 2013

Livre Arbítrio


Na em 1996, a televisão levou ao ar uma reportagem sobre o uso de crack pelos adolescentes (e o assunto, hoje, virou epidemia).
Ao ver, na reportagem, o sofrimento dos pais e a luta ingente do drogado, lutando para se livrar das garras tirânicas da dependência, me ocorreu a seguinte parábola sobre esta questão da soberania divina e da liberdade humana. Ei-la.
Certo dia, um pai descobre que seu filho é um drogado, dependente de crack. Faz de tudo para ajudar o rapaz, mas este, ainda que lute para se desvencilhar, não tem mais forças para largá-la, e tenta se matar, inclusive para se livrar do complexo de culpa, pelo desgosto causado aos pais. O pai o acha a tempo (estava meio de olho), socorre-o e o salva.
Alguns dias depois, em conversa com o filho já convalesceste, propõe-lhe uma solução extrema. O pai tem uma idéia para devolver ao filho a força (o livre-arbítrio) para sair daquela situação. Propõe ao filho e este aceita.
Pegam um carro e vão, somente os dois, para um sítio isolado. Longe de tudo e de todos. Ali, tentarão lutar contra a droga, cortando lenha, subindo corredeiras, trabalhando pesado até caírem mortos de cansaço. O pai está atento e determinado a aguentar mais que o fragilizado rapaz.
No segundo dia, o jovem começa a mudar: a mostrar-se indócil, agitado, impaciente, nervoso, irado, truculento, violento. Ele precisa daquela droga. Seu organismo exige (seu “senhor” o está chamando de volta). O pai vai contemporizando, conversando, distraindo, sabendo que precisa ganhar tempo. Precisa, pelo menos, de uma semana (este é o tempo que os médicos estabelecem para a desintoxicação química do organismo).
No terceiro dia, o filho tenta fugir de noite, mas o pai, que a estas alturas está dormindo com um olho só, o intercepta. O garoto está transtornado. O pai o agarra. Este, cego por dores internas fortíssimas, agride o pai com fúria, e tenta correr. O pai se levanta e o alcança. Está determinado a ajudar o filho. Uma semana, é a meta. Faltam 4 dias ainda. Agarra o garoto, que tenta agredi-lo novamente. Mas desta vez o pai é quem o soca violentamente. O garoto cai desacordado.
O pai o leva de volta para a casa e o amarra na cama. Quando o rapaz acorda, começa a gritar, gemer, xingar, blasfemar, contorcer-se, desafiar o pai, dizer os piores desaforos. O pai tenta abraçá-lo, mas é recebido com cusparadas e palavrões. Uma noite de cão.
A estas alturas, imagino um calvinista dizendo: “aqui, o pai retirou o livre-arbítrio do menino”. E eu responderia: “que livre-arbítrio?”
Amarrado, o rapaz fica ali por mais quatro dias. Reclama de dores nas costas, de mau-jeito, de dores nas mãos, nos tornozelos, por causa das cordas. O pai, algumas vezes, tentou afrouxá-las, para aliviar o desconforto, para levá-lo ao banheiro, etc., mas ele tentou escapar. Foi preciso lutar, agarrar, bater de novo.
Bem, não vou me alongar nos detalhes deste transe medonho. O fato é que a semana se passa, e, ao raiar do oitavo dia, o garoto já não está mais suando, nem com cólicas, nem trêmulo, nem com dores na barriga. Passou. A dependência química está cedendo.
Nesse dia, logo pela manhã, o rapaz acorda com um cheiro de café coado na hora, broas de milho, pão, manteiga e outras guloseimas. Uma mesa posta. Ele estava quase de jejum, e se mostra faminto.
Então o pai o surpreende: chega na sua cama com um sorriso e desata-lhe as cordas. Solta-o e convida-o para o café. Ele toma um banho quente e se assenta à mesa. Está mais animado, e chega a balbuciar algumas palavras monossilábicas, em resposta às tentativas de conversa do pai. Está despertando de um pesadelo.
No meio do café, num gesto brusco, levanta-se e corre para a porta. Num segundo, já está lá na porteira. Mas estranha que seu pai não esteja ao seu encalço. Olha para trás e constata que ele ficou parado, na porta da casa. Desconcertado e curioso, ele para e arrisca uma olhada, como que a perguntar: você não vai me prender?
O pai, entendendo a perplexidade do filho, grita de lá: “filho, Hoje você é um rapaz livre. Das drogas e de mim. Você volta para elas se quiser; volta para mim se quiser. Filho, não quer terminar o café?”