segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Nossa sutil hipocrisia

Emil Brunner disse certa vez que, em sua caminhada histórica, a igreja oriunda da Reforma procura automaticamente o engessamento de uma crescente e perene institucionalização, matando o caráter orgânico, vivo e livre da igreja. Brunner identifica o início da institucionalização da igreja quando o apóstolo Paulo normatiza o sacramento da Ceia em 1 Coríntios 11. Discordo do teólogo, pois creio que a semente dessa institucionalização é bem anterior, e pode ser encontrada nos embates travados entre os fariseus e o Crucificado.
Nesses embates, os fariseus, que eram professores da Lei, e que deveriam, por dever de ofício, conhecer as Escrituras, as negam ao reclamarem contra a terrível falha de Jesus em curar num sábado. “Era só o que faltava!”, diziam eles. Em sua sutil hipocrisia, os fariseus da época de Jesus ficavam chateados com a falta de modos do Senhor, que comia sem lavar as mãos, mas não se importaram em corromper um processo jurídico contra ele, ao comprar testemunhas e permitir correr o julgamento no Sinédrio à noite, o que era ilegal à época.
Hoje em dia, a igreja dita evangélica cada vez mais se engessa em seu institucionalismo ensimesmado, se aproximando do sistema religioso farisaico, cada vez mais se distancia da pura fonte de conhecimento de Deus, ou teologia, que é Jesus, e cada vez mais vivencia uma hipocrisia de modo sutil.
Enchemos a boca ao afirmarmos que nossa salvação é pela graça, mas enchemos as pessoas de cargos, sobrecargos e obrigações, que devem ser desempenhados sem pestanejar, para provar que é “um dos nossos” e merecedor da salvação.
Nos alegramos, e até mesmo nos orgulhamos, de nossa herança reformada. Mas, se é verdade que muitos arminianos oram como calvinistas (“Se for da tua vontade, Senhor...”), também é verdade que muitos calvinistas vivem sua vida como perfeitos agnósticos. Afinal, Deus é distante, intangível, inalcançável, portanto vou viver minha vida do meu jeito, sem me importar com isso.
Prezamos a família. Há até ministérios voltados para ela, e grande volume de literatura especializada no tema. Mas o número de divórcios aumenta, a quantidade de maus-tratos contra crianças se torna assustadora (sem contar os casos de abuso sexual cometidos dentro de famílias evangélicas, por pais, tios, avós ou padrastos), cada vez mais desordens de ordem sexual se tornam presentes, sem que isso seja tratado com coragem, discrição e amor. E sem falar também que, de todas as famílias da igreja, a do pastor é a mais penalizada.
Há muitas camisetas e adesivos de carro que dizem “Jesus te ama”, “Deus é amor”, mas somos frios, distantes, individualistas e cruéis. Não conseguimos expressar esse amor ao homossexual, ao alcoólatra, ao mendigo. Ou ao crente da igreja com uma teologia diferente da nossa, ou mesmo ao católico.
Aliás, somos muito ciosos em relação à pureza da nossa devoção. Falamos contra a crescente mariolatria, como bem apontou Hans Küng, mas temos nossos ídolos, nossos pequenos deuses, nossos altares de adoração abjeta. Enquanto muitos católicos adoram uma figura bíblica que foi instrumento da ação de Deus na história, muitos de nós adoramos homens sem escrúpulo, sem caráter e com uma enorme voracidade por fama, poder e dinheiro. Talvez até mesmo por nos espelharmos neles.
Prezamos a transparência, reclamamos até mesmo disso em relação aos governos. Mas não sabemos o que fazer com aqueles que decidem abrir seus corações, expondo suas fraquezas e sua dependência de Deus. Em um tempo de cultivo de heróis gospel, não soa bem se mostrar frágil.
Prezamos o papel de líder, enquanto Jesus prezava a atitude de servo. Prezamos a vitória e a intrepidez, mas Jesus morreu como um bandido fora da cidade santa, abandonado por todos. Nos espelhamos na esperteza relatada em livros sobre liderança, mas Jesus nos incita à simplicidade infantil. Buscamos metodologias para a igreja crescer, mas nos esquecemos que quem enche a igreja é o Espírito, e qualquer outro crescimento produzido fora dele é puro inchaço.
Em tempos em que as técnicas ditam as normas (como bem disse Won Sul Lee), é anacrônico ser fiel a alguém que não se vê e que nem sempre responde como queremos. Mas somos chamados a este anacronismo, somos chamados para vivermos, como diz o antigo hino, para o Deus dos antigos, o Deus que nos limpa por dentro e nos remove a sutil hipocrisia dos fariseus modernos. O Deus que nos quer íntegros e transparentes. O Deus que nos quer santos.

Rodrigo de Lima

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Simplicidade e permanência

De vez em quando gosto de reler “Cartas de um Diabo a seu Aprendiz”, de C. S. Lewis. Sua habilidade em perscrutar os labirintos da tentação me impressionam. Ele nos ajuda a reconhecer nossa enorme ingenuidade e a profunda sagacidade do inimigo.
Em uma dessas cartas, o Diabo reconhece que o verdadeiro problema dos cristãos é que eles são “simplesmente” cristãos. O laço que os une é a vida comum que eles têm em Cristo. Ele então aconselha seu sobrinho: “O que nós desejamos, se não houver mesmo jeito e os homens tiverem de tornar-se cristãos, é mantê-los num estado de espírito que eu chamo de cristianismo e alguma outra coisa [...]. Substitua a fé em si por alguma moda com colorido cristão. Faça com que tenham horror à Mesma Coisa de Sempre”.
A “mesma coisa de sempre” nos deixa entediados. Ser “simplesmente” cristão, para muitos, não é suficiente. Precisamos de coisas novas. Sempre. Modelos novos de igreja, um jeito diferente de cantar, formas inovadoras de culto, estratégias sofisticadas de crescimento, e por aí vai. Somos movidos pelas novidades, não pela profundidade. Nosso interesse está na variedade, não na densidade.
O reverendo A. W. Tozer, num artigo intitulado “A velha e a nova cruz”, comenta o mesmo fenômeno: “Uma nova filosofia brotou dessa nova cruz com respeito à vida cristã, e dessa nova filosofia surgiu uma nova técnica evangélica -- um novo tipo de reunião e uma nova espécie de pregação. Esse novo evangelismo emprega a mesma linguagem que o velho, mas o seu conteúdo não é o mesmo e sua ênfase difere da anterior”.
O Diabo, na carta ao seu sobrinho aprendiz, diz: “O horror pela mesma coisa de sempre é uma das mais preciosas paixões que incutimos no coração humano -- uma fonte infinita de conselhos estúpidos, de infidelidade conjugal e de inconstâncias na amizade”. A lista poderia se estender, mas o que se encontra por trás desse “horror pela mesma coisa de sempre” é a grande atração pelo novo seguida de uma profunda distração pelo essencial. O que a novidade faz é direcionar nossa atenção para outras preocupações, dando mais valor aos meios e não aos fins.
A formação espiritual cristã sempre requereu, basicamente, obediência a Cristo no seu chamado a proclamar o evangelho, fazer discípulos, integrá-los numa comunidade trinitária e ensiná-los a guardar a sua palavra. Ensiná-los a se comprometerem com o serviço como expressão de amor para com o próximo e com o cultivo e a prática de disciplinas espirituais como oração, jejum, arrependimento, confissão, leitura e meditação nas Escrituras e contemplação.
Não importa o quanto nossas igrejas e ministérios sejam sofisticados. Não importa o volume de novidades e tecnologias que oferecemos. Se no final não encontrarmos as mesmas coisas de sempre, significa que nos perdemos com o meio e não alcançamos o fim.
Existem dois aspectos que considero fundamentais na experiência espiritual cristã: simplicidade e permanência. Quando perguntaram para Jesus como o reino de Deus viria, ele respondeu afirmando o seu caráter discreto. Não viria com grande estardalhaço. Se estabeleceria dentro daqueles que o confessam como Senhor e Rei. Jesus apresenta um evangelho que transforma de dentro para fora. O que o vaso contém é infinitamente maior e mais valioso que o vaso. Ele cresce como uma pequena semente de mostarda. A simplicidade está na natureza própria do evangelho.
A permanência define o caráter pessoal e relacional da fé. Permanecer em Cristo é permanecer ligado como galho na videira. É somente nessa permanência que recebemos de Cristo sua vida e a transmitimos aos outros. Permanecer é mais do que conhecer -- é manter-se em constante e dinâmico relacionamento. As novidades não transformam o caráter; a permanência, sim. Para C. S. Lewis, a maturidade é algo que “todos alcançam na velocidade de sessenta minutos por hora, independentemente do que façam e de quem sejam”.

Ricardo Barbosa de Souza

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Para que servem os Pardais

Por muitas vezes me fiz essa pergunta: Para quê servem os pardais? Pássaros intrometidos, bem conhecidos de todos nós, que entram por qualquer abertura, espalhando gravetos e palha, piolhos e outras coisas mais pelas nossas casas e que está presente em todos os continentes.
Por estas e outras razões a minha vontade foi sempre de mantê-los longe. Pois afinal, para quê servem os pardais? São pequenos demais para serem assados, cozidos ou fritos. São comuns demais para serem nossos animais de estimação preferidos. Além disso, seu canto é monótono com uma melodia que está longe de ser a mais bela entre os pássaros.
Há uma questão, portanto, a ser encarada: Acostumamo-nos a olhar as coisas quase sempre na perspectiva utilitarista imediatista: ou serve para comer, vestir, dar cheiro, embelezar, alegrar, como objeto para realizar nossos projetos ou então não serve para nada. Diante disto, convenhamos, os pardais não servem para nada, pois como já dissemos não servem para comer; sua pele não serve para fazer casacos caros e macios; beleza? Não é o seu forte!

Alegrar, nem pensar fazem é muita bagunça!

Portanto, a conclusão parece ser que: os pardais não deviam existir; sua criação foi equivocada, pois para nada servem (isso parece se aplicar a algumas pessoas também – que achamos inúteis como os pardais).
Eu costumava pensar com aqueles que os acham inúteis, entretanto eles estão dente os pássaros citados pela Bíblia, logo não podem ser desprezados. Vejamos o que é dito sobre eles: “Não se vendem cinco pardais por dois asses? Entretanto, nenhum deles está em esquecimento diante de Deus” (LUCAS, 12.6. Grifo nosso). “O pardal encontrou casa, e a andorinha, ninho para si, onde acolha os seus filhotes; eu, os teus altares, SENHOR dos Exércitos, Rei meu e Deus meu!” (SALMO 84.3).
Foi então que, numa bela tarde, fui incomodado pela festa que os pardais faziam no pé de manga no fundo de minha casa. Neste momento caiu a ficha. Pois a festa daqueles pardais poderia me incomodar, mas certamente glorificava o criador.
A lição? Descobri que os pardais podem nos ensinar coisas preciosas e vou citar apenas duas: Louvar e Orar. Eles não têm o canto mais bonito, mas isto não os impedem de cantar, cantar e cantar. Cantam quando o dia nasce, como que orando a Deus por ter renovado seu cuidado e misericórdia sobre suas vidas, e cantam no final da tarde, em oração, numa festa barulhenta e comunitária, celebrando o cuidado de Deus durante o dia e a oportunidade de renovar suas forças para um novo dia que virá.
Cantar e orar é o que os pardais fazem – faça chuva ou faça sol, eles cantam orando. A melodia, se agradável ou não, a minha opinião não parece lhes incomodar. Eles apenas cantam e ao cantarem oram e ao orarem agradam ao Pai que não os ignoram ou os esquecem em virtude da sua aparente inutilidade.
Creio sinceramente que a oração de um pardal está em melhor sintonia com o coração de Deus do que as mais belas orações que fazemos (cheias de reivindicações e vazias de gratidão), porque não sabemos orar (por isso achamos o canto dos pardais monótono) e cantamos apenas quando as coisas estão segundo o nosso desejo egoísta.
Por isso, creio que a palavra de Paulo se aplica também aos pardais: “[...] Deus escolheu as coisas loucas do mundo para envergonhar os sábios e escolheu as coisas fracas do mundo para envergonhar as fortes; e Deus escolheu as coisas humildes do mundo, e as desprezadas, e aquelas que não são, para reduzir a nada as que são;” (I CORÍNTIOS 1:28).

Vida longa aos pardais!

No amor de Cristo,

Baltasar Dos Reis Faria