segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Nossa sutil hipocrisia

Emil Brunner disse certa vez que, em sua caminhada histórica, a igreja oriunda da Reforma procura automaticamente o engessamento de uma crescente e perene institucionalização, matando o caráter orgânico, vivo e livre da igreja. Brunner identifica o início da institucionalização da igreja quando o apóstolo Paulo normatiza o sacramento da Ceia em 1 Coríntios 11. Discordo do teólogo, pois creio que a semente dessa institucionalização é bem anterior, e pode ser encontrada nos embates travados entre os fariseus e o Crucificado.
Nesses embates, os fariseus, que eram professores da Lei, e que deveriam, por dever de ofício, conhecer as Escrituras, as negam ao reclamarem contra a terrível falha de Jesus em curar num sábado. “Era só o que faltava!”, diziam eles. Em sua sutil hipocrisia, os fariseus da época de Jesus ficavam chateados com a falta de modos do Senhor, que comia sem lavar as mãos, mas não se importaram em corromper um processo jurídico contra ele, ao comprar testemunhas e permitir correr o julgamento no Sinédrio à noite, o que era ilegal à época.
Hoje em dia, a igreja dita evangélica cada vez mais se engessa em seu institucionalismo ensimesmado, se aproximando do sistema religioso farisaico, cada vez mais se distancia da pura fonte de conhecimento de Deus, ou teologia, que é Jesus, e cada vez mais vivencia uma hipocrisia de modo sutil.
Enchemos a boca ao afirmarmos que nossa salvação é pela graça, mas enchemos as pessoas de cargos, sobrecargos e obrigações, que devem ser desempenhados sem pestanejar, para provar que é “um dos nossos” e merecedor da salvação.
Nos alegramos, e até mesmo nos orgulhamos, de nossa herança reformada. Mas, se é verdade que muitos arminianos oram como calvinistas (“Se for da tua vontade, Senhor...”), também é verdade que muitos calvinistas vivem sua vida como perfeitos agnósticos. Afinal, Deus é distante, intangível, inalcançável, portanto vou viver minha vida do meu jeito, sem me importar com isso.
Prezamos a família. Há até ministérios voltados para ela, e grande volume de literatura especializada no tema. Mas o número de divórcios aumenta, a quantidade de maus-tratos contra crianças se torna assustadora (sem contar os casos de abuso sexual cometidos dentro de famílias evangélicas, por pais, tios, avós ou padrastos), cada vez mais desordens de ordem sexual se tornam presentes, sem que isso seja tratado com coragem, discrição e amor. E sem falar também que, de todas as famílias da igreja, a do pastor é a mais penalizada.
Há muitas camisetas e adesivos de carro que dizem “Jesus te ama”, “Deus é amor”, mas somos frios, distantes, individualistas e cruéis. Não conseguimos expressar esse amor ao homossexual, ao alcoólatra, ao mendigo. Ou ao crente da igreja com uma teologia diferente da nossa, ou mesmo ao católico.
Aliás, somos muito ciosos em relação à pureza da nossa devoção. Falamos contra a crescente mariolatria, como bem apontou Hans Küng, mas temos nossos ídolos, nossos pequenos deuses, nossos altares de adoração abjeta. Enquanto muitos católicos adoram uma figura bíblica que foi instrumento da ação de Deus na história, muitos de nós adoramos homens sem escrúpulo, sem caráter e com uma enorme voracidade por fama, poder e dinheiro. Talvez até mesmo por nos espelharmos neles.
Prezamos a transparência, reclamamos até mesmo disso em relação aos governos. Mas não sabemos o que fazer com aqueles que decidem abrir seus corações, expondo suas fraquezas e sua dependência de Deus. Em um tempo de cultivo de heróis gospel, não soa bem se mostrar frágil.
Prezamos o papel de líder, enquanto Jesus prezava a atitude de servo. Prezamos a vitória e a intrepidez, mas Jesus morreu como um bandido fora da cidade santa, abandonado por todos. Nos espelhamos na esperteza relatada em livros sobre liderança, mas Jesus nos incita à simplicidade infantil. Buscamos metodologias para a igreja crescer, mas nos esquecemos que quem enche a igreja é o Espírito, e qualquer outro crescimento produzido fora dele é puro inchaço.
Em tempos em que as técnicas ditam as normas (como bem disse Won Sul Lee), é anacrônico ser fiel a alguém que não se vê e que nem sempre responde como queremos. Mas somos chamados a este anacronismo, somos chamados para vivermos, como diz o antigo hino, para o Deus dos antigos, o Deus que nos limpa por dentro e nos remove a sutil hipocrisia dos fariseus modernos. O Deus que nos quer íntegros e transparentes. O Deus que nos quer santos.

Rodrigo de Lima

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Simplicidade e permanência

De vez em quando gosto de reler “Cartas de um Diabo a seu Aprendiz”, de C. S. Lewis. Sua habilidade em perscrutar os labirintos da tentação me impressionam. Ele nos ajuda a reconhecer nossa enorme ingenuidade e a profunda sagacidade do inimigo.
Em uma dessas cartas, o Diabo reconhece que o verdadeiro problema dos cristãos é que eles são “simplesmente” cristãos. O laço que os une é a vida comum que eles têm em Cristo. Ele então aconselha seu sobrinho: “O que nós desejamos, se não houver mesmo jeito e os homens tiverem de tornar-se cristãos, é mantê-los num estado de espírito que eu chamo de cristianismo e alguma outra coisa [...]. Substitua a fé em si por alguma moda com colorido cristão. Faça com que tenham horror à Mesma Coisa de Sempre”.
A “mesma coisa de sempre” nos deixa entediados. Ser “simplesmente” cristão, para muitos, não é suficiente. Precisamos de coisas novas. Sempre. Modelos novos de igreja, um jeito diferente de cantar, formas inovadoras de culto, estratégias sofisticadas de crescimento, e por aí vai. Somos movidos pelas novidades, não pela profundidade. Nosso interesse está na variedade, não na densidade.
O reverendo A. W. Tozer, num artigo intitulado “A velha e a nova cruz”, comenta o mesmo fenômeno: “Uma nova filosofia brotou dessa nova cruz com respeito à vida cristã, e dessa nova filosofia surgiu uma nova técnica evangélica -- um novo tipo de reunião e uma nova espécie de pregação. Esse novo evangelismo emprega a mesma linguagem que o velho, mas o seu conteúdo não é o mesmo e sua ênfase difere da anterior”.
O Diabo, na carta ao seu sobrinho aprendiz, diz: “O horror pela mesma coisa de sempre é uma das mais preciosas paixões que incutimos no coração humano -- uma fonte infinita de conselhos estúpidos, de infidelidade conjugal e de inconstâncias na amizade”. A lista poderia se estender, mas o que se encontra por trás desse “horror pela mesma coisa de sempre” é a grande atração pelo novo seguida de uma profunda distração pelo essencial. O que a novidade faz é direcionar nossa atenção para outras preocupações, dando mais valor aos meios e não aos fins.
A formação espiritual cristã sempre requereu, basicamente, obediência a Cristo no seu chamado a proclamar o evangelho, fazer discípulos, integrá-los numa comunidade trinitária e ensiná-los a guardar a sua palavra. Ensiná-los a se comprometerem com o serviço como expressão de amor para com o próximo e com o cultivo e a prática de disciplinas espirituais como oração, jejum, arrependimento, confissão, leitura e meditação nas Escrituras e contemplação.
Não importa o quanto nossas igrejas e ministérios sejam sofisticados. Não importa o volume de novidades e tecnologias que oferecemos. Se no final não encontrarmos as mesmas coisas de sempre, significa que nos perdemos com o meio e não alcançamos o fim.
Existem dois aspectos que considero fundamentais na experiência espiritual cristã: simplicidade e permanência. Quando perguntaram para Jesus como o reino de Deus viria, ele respondeu afirmando o seu caráter discreto. Não viria com grande estardalhaço. Se estabeleceria dentro daqueles que o confessam como Senhor e Rei. Jesus apresenta um evangelho que transforma de dentro para fora. O que o vaso contém é infinitamente maior e mais valioso que o vaso. Ele cresce como uma pequena semente de mostarda. A simplicidade está na natureza própria do evangelho.
A permanência define o caráter pessoal e relacional da fé. Permanecer em Cristo é permanecer ligado como galho na videira. É somente nessa permanência que recebemos de Cristo sua vida e a transmitimos aos outros. Permanecer é mais do que conhecer -- é manter-se em constante e dinâmico relacionamento. As novidades não transformam o caráter; a permanência, sim. Para C. S. Lewis, a maturidade é algo que “todos alcançam na velocidade de sessenta minutos por hora, independentemente do que façam e de quem sejam”.

Ricardo Barbosa de Souza

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Para que servem os Pardais

Por muitas vezes me fiz essa pergunta: Para quê servem os pardais? Pássaros intrometidos, bem conhecidos de todos nós, que entram por qualquer abertura, espalhando gravetos e palha, piolhos e outras coisas mais pelas nossas casas e que está presente em todos os continentes.
Por estas e outras razões a minha vontade foi sempre de mantê-los longe. Pois afinal, para quê servem os pardais? São pequenos demais para serem assados, cozidos ou fritos. São comuns demais para serem nossos animais de estimação preferidos. Além disso, seu canto é monótono com uma melodia que está longe de ser a mais bela entre os pássaros.
Há uma questão, portanto, a ser encarada: Acostumamo-nos a olhar as coisas quase sempre na perspectiva utilitarista imediatista: ou serve para comer, vestir, dar cheiro, embelezar, alegrar, como objeto para realizar nossos projetos ou então não serve para nada. Diante disto, convenhamos, os pardais não servem para nada, pois como já dissemos não servem para comer; sua pele não serve para fazer casacos caros e macios; beleza? Não é o seu forte!

Alegrar, nem pensar fazem é muita bagunça!

Portanto, a conclusão parece ser que: os pardais não deviam existir; sua criação foi equivocada, pois para nada servem (isso parece se aplicar a algumas pessoas também – que achamos inúteis como os pardais).
Eu costumava pensar com aqueles que os acham inúteis, entretanto eles estão dente os pássaros citados pela Bíblia, logo não podem ser desprezados. Vejamos o que é dito sobre eles: “Não se vendem cinco pardais por dois asses? Entretanto, nenhum deles está em esquecimento diante de Deus” (LUCAS, 12.6. Grifo nosso). “O pardal encontrou casa, e a andorinha, ninho para si, onde acolha os seus filhotes; eu, os teus altares, SENHOR dos Exércitos, Rei meu e Deus meu!” (SALMO 84.3).
Foi então que, numa bela tarde, fui incomodado pela festa que os pardais faziam no pé de manga no fundo de minha casa. Neste momento caiu a ficha. Pois a festa daqueles pardais poderia me incomodar, mas certamente glorificava o criador.
A lição? Descobri que os pardais podem nos ensinar coisas preciosas e vou citar apenas duas: Louvar e Orar. Eles não têm o canto mais bonito, mas isto não os impedem de cantar, cantar e cantar. Cantam quando o dia nasce, como que orando a Deus por ter renovado seu cuidado e misericórdia sobre suas vidas, e cantam no final da tarde, em oração, numa festa barulhenta e comunitária, celebrando o cuidado de Deus durante o dia e a oportunidade de renovar suas forças para um novo dia que virá.
Cantar e orar é o que os pardais fazem – faça chuva ou faça sol, eles cantam orando. A melodia, se agradável ou não, a minha opinião não parece lhes incomodar. Eles apenas cantam e ao cantarem oram e ao orarem agradam ao Pai que não os ignoram ou os esquecem em virtude da sua aparente inutilidade.
Creio sinceramente que a oração de um pardal está em melhor sintonia com o coração de Deus do que as mais belas orações que fazemos (cheias de reivindicações e vazias de gratidão), porque não sabemos orar (por isso achamos o canto dos pardais monótono) e cantamos apenas quando as coisas estão segundo o nosso desejo egoísta.
Por isso, creio que a palavra de Paulo se aplica também aos pardais: “[...] Deus escolheu as coisas loucas do mundo para envergonhar os sábios e escolheu as coisas fracas do mundo para envergonhar as fortes; e Deus escolheu as coisas humildes do mundo, e as desprezadas, e aquelas que não são, para reduzir a nada as que são;” (I CORÍNTIOS 1:28).

Vida longa aos pardais!

No amor de Cristo,

Baltasar Dos Reis Faria

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Naamã

Ao examinarmos a história de Naamã, o leproso, começamos analisando o seu estado. "Naamã, capitão do exército… da Síria, era um grande homem… porém leproso". Apesar de suas vitórias passadas e das suas honras presentes, ele tinha um problema escondido que não ficaria oculto por muito tempo. Se não fosse tratado, aquele mal acabaria por destruí-lo. Você se identifica com Naamã? Hoje tudo pode estar ao seu favor. Você se formou na melhor universidade, tem uma boa família e construiu uma igreja ou um negócio, ou atingiu o topo da sua carreira. Mas antes que você consiga se qualificar para uma bênção maior, Deus o obrigará a lidar com a situação que está oculta em baixo da sua armadura. Pessoas proeminentes em todas as ocupações passam por isso, principalmente as espirituais. É isto que as separa das demais. É isto que as conduz a atravessar a ponte que vai do medíocre ao excepcional. Sem obstáculos, seremos sempre pessoas comuns! Não estamos falando de problemas pequenos. Estamos falando de problemas tão avassaladores que você não consegue dormir; coisas que dão nó no estômago e que fazem o seu coração perder o ritmo das batidas e que o fazem temer "é isto que vai me matar!" É o motivo pelo qual você ora em segredo. É aquilo que você não quer que as pessoas vejam. Portanto, como Naamã, você coloca a sua couraça, depois vai para casa e sofre por causa da sua situação. Entenda isso: Deus ensina algumas das Suas maiores lições nos vales da vida. É ali que você aprende a ficar prostrado diante Dele, chorando e quebrantado. É ali que você ora: "Deus, não deixes isso me destruir. Trata com isto através do poder do Teu Espírito". E eis as boas novas: este tipo de oração realmente traz libertação.
Naamã tinha um problema; um problema singular. Relembrando esta mesma história, Jesus disse: "Havia muitos leprosos em Israel nos dias do profeta Eliseu, e nenhum deles foi purificado exceto Naamã..." (Lucas 4:27 NKJV). É mais fácil crer em Deus para algo que você O viu fazer antes. Mas Naamã não apenas tinha lepra, como ninguém que ele conhecia jamais havia sido curado dela. Você está sendo testado hoje por causa de uma situação singular em sua vida, no seu casamento ou na sua carreira? Você tem medo de falar sobre isso porque não conhece ninguém que um dia tenha superado esse problema em particular? Se for assim, pare de se concentrar no problema e comece a se concentrar em Deus! Para início de conversa, Ele não precisa de nada para solucionar o seu problema. Lembre-se, em Gênesis Ele pendurou a terra sobre o nada, e ela continua girando todos os dias! A Bíblia diz que Naamã foi um "grande… homem", mas Deus estava prestes a torná-lo um homem ainda maior. Sempre que Ele faz isso, permite que entremos em situações difíceis onde não existem soluções humanas. Quando quer que tenhamos uma grande influência, Ele permite que enfrentemos grandes desafios. É assim que Ele nos transforma de pessoas que impressionam em pessoas verdadeiramente excepcionais. Mas quando Ele fizer isso, tome cuidado. Uma das primeiras perguntas que as pessoas vão fazer é: "Como você fez isto?" Elas vão começar a admirar a sua posição e a sua armadura, quando o tempo todo foi a sua aflição que o levou a cair de joelhos e permitiu que Deus fizesse de você a pessoa que você se tornou. Antes de poder ser excepcional, você precisa trabalhar para desenvolver a fé que crê em Deus para fazer o impossível, e confiar no que Ele diz independente das probabilidades.
Quando Deus lhe der uma resposta, não discuta nem racionalize. Apenas faça o que Ele disser – e você sairá limpo. O orgulho de Naamã quase lhe custou a vida. Quando ele saiu da casa de Eliseu, estava zangado porque Eliseu não havia saído para falar com ele pessoalmente. Em vez disso, enviou um mensageiro para lhe dizer para mergulhar sete vezes no lamacento Rio Jordão. "Não existem rios mais limpos?" perguntou Naamã, sentindo-se insultado. A esta altura, o servo de Naamã disse: "Se o profeta houvesse lhe dito para fazer alguma coisa difícil, você a teria feito. Não vale a pena obedecer a ele para viver?" (v. 13). Hoje Deus está lhe fazendo a mesma pergunta. Não vale a pena se humilhar para sair limpo? Confessar o seu pecado, compartilhar a sua história e pedir ajuda?  Não permita que preocupar-se com a reputação impeça-o de encontrar a solução. Não permita que o diabo o atraia para outros rios que não têm poder para salvar. Tudo que você precisa é o tipo de fé que implica em parecer tolo por algum tempo. Este é o tipo de fé que mantém você dependente de Deus quando parece que todo mundo está se saindo melhor do que você. Vá em frente, mergulhe no rio da graça de Deus, e continue mergulhando! Embora você tenha sido insultado, embora os seus sentimentos estejam feridos, embora o processo não pareça fazer sentido, embora você tenha chegado ao fim da linha e queira desistir, continue mergulhando. Aja com base na Palavra que Deus lhe deu! Os milagres são para os obedientes, não para os que apenas desejam recebê-los.

Enviado por Bianca Santos

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Livros para adultos

NÃO HÁ necessidade de se preocupar com pessoas brincalhonas que tentam ridicularizar a esperança que os cristãos depositam no “Céu” dizendo que elas não querem “passar a eternidade dedilhando harpas”. A resposta a esse tipo de gente é que, se elas não conseguem entender livros escritos para adultos, não deveriam ficar falando sobre eles. Toda a simbologia bíblica (harpas, coroas, ouro etc.) não passa, claro, de uma tentativa simbólica de expressar o inexprimível. Os instrumentos musicais são mencionados porque para muitas pessoas (nem todas) são na vida presente o que melhor reflete e sugere o entusiasmo e o infinito. As coroas são mencionadas para sugerir que todos os que se encontram unidos a Deus na eternidade compartilham do seu esplendor, poder e alegria. O ouro é mencionado para sugerir a eternidade (ouro não enferruja) e a preciosidade do Céu. As pessoas que entendem esses símbolos literalmente podem achar que, quando Cristo nos disse para sermos como pombas, ele pediu que botássemos ovos.


– de Mere Christianity [Cristianismo Puro e Simples]

Retirada de Um Ano com C. S. Lewis (Editora Ultimato, 2005).

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Enfim, convidados a entrar...

PODE até parecer cruel demais descrever a glória como o fato de ser “notado” por Deus. Mas é essa praticamente a linguagem usada no Novo Testamento. O apóstolo Paulo promete àqueles que amam a Deus não, como poderíamos supor, que eles virão a conhecê-lo, mas que eles acabem sendo conhecidos por Deus (1 Co 8.3) . Essa é uma promessa muito estranha. Deus não sabe tudo o tempo todo? Contudo isso parece temível em uma outra passagem do Novo Testamento. Nela nós somos advertidos de que todos nós acabaremos comparecendo diante da face de Deus somente para ouvir as espantosas palavras: “Eu nunca o conheci. Afaste-se de mim” [Mt 7.23]. Em algum sentido, que é tão obscuro para o intelecto quanto é insuportável para os sentimentos, é possível que aconteçam ambas as coisas: que sejamos banidos da presença daquele que está presente em todos os lugares e apagados da memória daquele que conhece todas as coisas. Pode ser que fiquemos completa e absolutamente de fora – repelidos, exilados, feitos estrangeiros, e final e inexplicavelmente ignorados. Por outro lado, é possível que sejamos convidados a entrar, recebamos as boas-vindas, sejamos bem recebidos e reconhecidos. Caminhamos diariamente sobre o fio da navalha entre essas duas possibilidades incríveis. Aparentemente, então, a nossa nostalgia de toda uma vida, o desejo de sermos reunificados com alguma coisa no universo da qual nos sentimos cortados hoje, e de estar do lado de dentro de alguma porta para a qual ficamos sempre olhando do lado de fora, não é nenhuma fantasia neurótica; pelo contrário, é o indício mais verdadeiro da nossa situação real. E sermos finalmente convidados a entrar significaria tanto honra e glória que ultrapassam todos os nossos méritos quanto a cura daquela boa e velha saudade.

– de The Weight of Glory [Peso de Glória]

1963 Lewis morre às 17h30min., nos Kilns, uma semana antes de completar 65 anos. Seu corpo está enterrado no pátio da Holy Trinity Church, em Headington Quarry, Oxford.

Mire o Céu

A ESPERANÇA pertence às virtudes teológicas. Isso significa que olhar constantemente para frente, rumo ao mundo eterno, não é nenhuma forma de escapismo (como pensam alguns modernos) ou de desejos reprimidos, e sim algo que se espera que um cristão faça. Isso não significa que devamos deixar o mundo presente do jeito que está. Se você levar em conta a história, descobrirá que os cristãos que mais fizeram pelo mundo presente foram exatamente aqueles que mais pensavam no que há por vir. Os próprios apóstolos, que deram o pontapé inicial à conversação com o Império Romano, os grandes homens que construíram a Idade Média, os evangélicos ingleses que lutaram pela abolição da escravatura, todos eles deixaram as suas marcas nesta terra exatamente porque as suas mentes estavam ocupadas com os Céus. Foi exatamente quando os cristãos pararam de pensar no outro mundo que eles se tornaram tão pouco efetivos neste. Mire o Céu e terá a Terra por “acréscimo”; mire a Terra e não terá nenhuma das duas coisas. Essa me parece uma regra estranha, mas algo parecido pode entrar em ação quando se trata de outros assuntos. A saúde é uma grande bênção, mas no momento em que você torna a saúde um dos seus principais objetivos diretos, começará a se tornar um excêntrico, imaginando que haverá algo de errado. Você só terá chance de ter saúde se desejar também outras coisas – comida, jogos, trabalho, diversão, ar puro. Da mesma forma, nunca teremos chance de salvar a civilização enquanto ela for o nosso principal objeto. Temos que aprender a desejar outras coisas muito mais.

– de Mere Christianity [Cristianismo Puro e Simples]

Retirada de Um Ano com C. S. Lewis (Editora Ultimato, 2005).

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Ufanismos, messianismos e outras mentiras

Ricardo Gondin
O tempo tudo destrói. O vento da história cobre todas as coisas de poeira. Impérios, outrora avassaladores, hoje entediam alunos secundaristas, que só precisam conhecê-los para passar de ano. Napoleão, o temido imperador francês, virou nome de cachorro. Na mitologia, Kronos, o deus do tempo, inclemente, devorava seus filhos.
O escritor português Vergílio Ferreira percebeu que muitos tratados são escritos sobre a infância, juventude e idade adulta. E em todos se “fala de ir” -- ir para o futuro. Desejos, sonhos e ambições impulsionam a vida. Mas para qual futuro? Vergílio Ferreira conclui que esse tal “ir” é rumar para a velhice; “velhice é estar”. De fato, velhice é a idade em que passamos o restante da vida. E, existencialmente, não há muita opção: ou se morre cedo, como um Camelot, ou se enfrenta a decrepitude dos senis.
Embora não seja oficialmente idoso -- ainda faltam alguns anos --, eu começo a me preparar para os derradeiros anos. Não quero viver os próximos anos de minha vida como meros sobejos dos bons tempos que já vivi. Reafirmo que ninguém é velho enquanto estiver disposto a aprender. Eu quero me manter flexível na madureza. Sei que nada sei.
Sobretudo, quero aprender a despojar-me de falsas onipotências. Já confiei em minha capacidade de ordenar a vida. Imaginava que verdades e princípios me blindariam contra decepções, tristezas e contrapés existenciais. Porém, como disse Chico Buarque, veio a Roda Viva e carregou o destino pra lá. Padeci desnecessariamente porque superestimei a minha capacidade de anular contingências existenciais.
Acreditei na mensagem religiosa que prometia engrenar o cotidiano, garantindo vitória sobre vitória. Esforcei-me o quanto pude para tornar a obediência capaz de livrar-me de tribulações. Eu buscava a excelência como chave para o dia-a-dia encapsulado na mais pura felicidade. Depois de vários tombos, inúmeras bobagens, enormes desapontamentos e grandes decepções, acordei. A vida não se deixa encabrestar. Vi que nunca havia conseguido adequar-me ao superego exigente que carregava dentro de mim. Eu me contemplava em espelhos distorcidos. A imagem que enxergava sempre foi maior do que eu mesmo. A juventude engana, mas a meia-idade esvazia os delirantes de seus devaneios.
Devido à minha onipotência, idealizei auditórios. Acreditei que a minha oratória seria capaz de arrebatar multidões. As longas horas em que preparei sermões representavam uma capacitação especial para ser uma extensão concreta e real do poder de Deus. Eu não admitia a minha ineficácia em converter, transformar, santificar. Confundi talentos naturais com “eleição”; minha habilidade com a oratória me inebriava. Mas, enquanto meus cabelos pratearam, dei-me conta que muitos meninos e meninas de nossa comunidade haviam desistido da fé. Minha eloquência não se mostrara tão infalível quanto eu supunha.
Muitas culpas nascem da falsa onipotência. Por me sentir com a responsabilidade de carregar o mundo nas costas, raramente me permitia vivenciar atividades que não redundassem no avanço da missão. Lazer, só para recompor, manter o vigor, e voltar a trabalhar. Poesia, nem pensar; poesia não ajuda a argumentar. Contente, acostumei-me a encaixar passeios em viagens missionárias. Considerava o convite para falar em uma conferência uma boa ocasião para tirar férias.
O simples correr dos anos bastou para minar tantos ufanismos juvenis. Aprendi a cantar com Almir Sater: “Ando devagar porque já tive pressa/ E levo esse sorriso/porque já chorei demais/ Hoje me sinto mais forte,/ mais feliz quem sabe/ Eu só levo a certeza de que/ muito pouco eu sei, eu nada sei”.
Pretendo seguir o restante da jornada, despretensiosamente. Sem arroubos, oferecer minhas frágeis intuições. Espero aprender como “mais me gloriar nas fraquezas” e poder repetir o apóstolo Paulo: “Porque, quando sou fraco, então é que sou forte” (2Co 12.10).
Começo a reconhecer limites e a dar de ombros ao imperativo religioso de superar a humanidade. Não sou angelical. Já não me considero um conquistador de utopias. Mantenho as utopias, mas as tenho como meras alavancas de minhas iniciativas. Não me considero apto a concretizá-las.
As minhas despedidas foram trágicas, meus lutos, inconsoláveis e minhas decepções, amargas. Aceito que a vida é frágil. Sei que não sou autossuficiente. No reconhecimento de minha debilidade, reaprendo a ser grato; gratidão nasce de uma memória que não é soberba. Sou agradecido por todos os que já me ajudaram; todos encarnaram o amor de Deus e eu quero mantê-los na lista das bênçãos recebidas.
O tempo que tudo desgasta, paradoxalmente, aviva a pergunta do profeta Miqueias, a que eu me antecipo a responder sim: “Ele te declarou, ó homem, o que é bom, e que é o que o Senhor pede de ti, senão que pratiques a justiça, e ames a misericórdia, e andes humildemente com o teu Deus?” (Mq 6.8).

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Creio na comunhão dos santos -- A relevância primordial da igreja

Para um bom número de cristãos da atualidade, a igreja vem se tornando um conceito sem sentido. Muitos acreditam que é perfeitamente possível ser um cristão autêntico sem estar formalmente ligado a uma comunidade de fé, sem ter um compromisso de lealdade a um grupo específico de fiéis. A proliferação de cultos pela televisão contribui para isso. Uma pessoa ou uma família assiste ao evento eletrônico e acha que isso é suficiente, que já satisfez suas necessidades espirituais. Outros, por terem um entendimento igualmente pobre acerca da igreja, pululam de um grupo para outro, sempre em busca de novidades, sem estabelecerem laços estáveis e significativos com nenhum deles.
No entanto, quando se olha para a história do cristianismo, verifica-se que durante muitos séculos os cristãos valorizaram imensamente a igreja. De fato, essa atitude de apreciação surge com os primeiros seguidores de Cristo, nos dias apostólicos. O Novo Testamento está repleto de alusões à “igreja”, muitas delas reveladoras do alto conceito que os primeiros crentes tinham sobre essa realidade fundamental, ainda que nem sempre fácil de definir. Em épocas mais recentes, todavia, tem se perdido esse consenso que existiu por tanto tempo sobre a importância primordial da igreja. Parte disso se deve à confusão reinante sobre a natureza e os propósitos desse valioso elemento da herança cristã.

Visível e invisível

Se historicamente tem predominado um consenso sobre a relevância da igreja, isso não significa que haja concordância quanto ao seu significado. Tradicionalmente, a teologia cristã tem entendido que a igreja pode ser apreciada desde duas perspectivas distintas: uma exterior, palpável e visível; outra interior, espiritual e invisível. As tradições católica romana e ortodoxa grega têm dado maior ênfase ao primeiro aspecto; as confissões protestantes, ao segundo. No entanto, corretamente entendidas e relacionadas, as duas dimensões são importantes e necessárias.
O primeiro aspecto diz respeito à natureza essencial da igreja, que é espiritual, apontando para o relacionamento concreto, porém misterioso e transcendente, entre o Salvador e os que a ele estão unidos pela fé. Cristo, em sua graciosa obra de reconciliação, é a pedra fundamental da igreja. A segunda perspectiva nos fala dos elementos estruturais e organizacionais da igreja, com seus líderes, cerimônias e locais de culto. O Novo Testamento dá clara prioridade ao primeiro aspecto, em especial por meio do riquíssimo conceito do “corpo de Cristo”. No entanto, fica claro que a igreja não poderia existir concretamente no mundo, na sociedade humana, sem elementos externos que dessem expressão às realidades internas. A questão é como se estabelece o adequado equilíbrio entre as duas dimensões.

Ministros e fiéis

Uma discussão paralela que atravessa os séculos é sobre onde está localizada primariamente a igreja: no clero, a classe ministerial, ou nos fiéis, o povo cristão. Novamente, o peso da evidência do cristianismo apostólico pende para a comunidade de fé como a principal definidora da igreja. Como afirma Roger Olson, um historiador da teologia, “a igreja é o povo de Deus, fundada pelo próprio Cristo para ser a comunidade do Espírito e a antecipação do seu reino futuro”. É óbvio que o ministério ordenado é importante: o próprio Senhor concedeu à sua igreja “apóstolos, profetas, evangelistas, pastores e mestres”. No entanto, esses líderes não são em si mesmos a igreja -- eles fazem parte da igreja ao lado dos demais fiéis, devendo exercer os seus ofícios para a edificação do corpo de Cristo.
O Credo Apostólico é um testemunho valioso sobre o sentido mais profundo dessa realidade quando, após referir-se ao Espírito e à Igreja, menciona a “comunhão dos santos” como um artigo fundamental da fé. A “communio sanctorum” -- o vínculo de convicções compartilhadas, solidariedade e amor que caracteriza os verdadeiros cristãos -- só pode ser produzida pelo Espírito Santo e se constitui na expressão mais sublime e profunda do que é a igreja. Apontam nessa direção as principais metáforas aplicadas pelo Novo Testamento à comunidade cristã, tais como família, rebanho e edifício de Deus.

Marcas distintivas

O Credo “Niceno”, formulado pelo Concílio de Constantinopla no ano 381, atribuiu à igreja quatro famosos qualificativos: una, santa, católica e apostólica. Em seu sentido mais pleno, ou seja, espiritual, há somente uma verdadeira igreja, o corpo místico de Cristo, a comunhão de todos os que nele creem em todo o mundo. Essa comunhão, embora se expresse em formas exteriores, ao mesmo tempo as transcende. A igreja é santa, isto é, separada para Deus a fim de ser o lugar de sua habitação na terra. Essa santidade se expressa não somente na conduta ética, mas também por seu foco espiritual em Deus e unicamente nele.
A catolicidade da igreja significa que ela existe acima das barreiras de etnia, nacionalidade e cultura. Confissões particulares, organizações e congregações locais são manifestações da igreja universal, mas nunca a própria igreja. Seu valor está no serviço a Cristo como parcelas do seu corpo mais amplo. Por fim, a igreja é apostólica, ou seja, está em continuidade com a fé e a experiência dos apóstolos de Jesus Cristo, e só se faz presente quando o evangelho proclamado pelos apóstolos é preservado e pregado com integridade.
Seguindo o pensamento de João Calvino, a tradição reformada fala das “marcas” pelas quais a igreja visível pode ser reconhecida como verdadeira. Elas não simplesmente descrevem a igreja ou apontam para ela, mas possuem um caráter mais dinâmico, constitutivo. A verdadeira igreja está presente quando nela, em primeiro lugar, ocorre a legítima pregação da Palavra. A fidelidade e submissão à Escritura é uma característica essencial da igreja. A outra marca distintiva e fundamental é a correta administração dos sacramentos claramente instituídos por Cristo, que são o batismo e a Ceia do Senhor, testemunhos valiosos da sua salvação.

 
Conclusão

A despeito de toda a ênfase dada aos aspectos espirituais e interiores da igreja, não se deve desprezar ou subestimar a sua dimensão visível e estrutural, indispensável na vida em sociedade. Extremamente informal nos seus primeiros tempos (como era de se esperar), o cristianismo assumiu crescente complexidade institucional ao longo dos séculos. Existe um lugar legítimo para o desenvolvimento histórico na vida da igreja, visto que a história humana não é estática, mas dinâmica. Sem um ministério qualificado e reconhecido, sem atividades formais de culto e formação cristã, sem o exercício legítimo da autoridade e da disciplina, entre outros fatores, a igreja simplesmente não poderia existir neste mundo.
Todavia, tendo dito isto, é imprescindível acrescentar que as formas e expressões exteriores da igreja, quaisquer que sejam, somente são legítimas na medida em que manifestam com fidelidade a natureza espiritual da comunidade cristã, o seu compromisso primordial com Cristo e sua palavra, a comunhão de fé e amor entre os discípulos do Senhor. Que os cristãos aprendam a valorizar a igreja, aquela que, no dizer dos reformadores do século 16, é nossa “mãe e mestra”, pois nos gera espiritualmente pelo anúncio do evangelho e nos alimenta e conduz pelos caminhos de Deus ao longo da vida, até a consumação.

Alderi de Souza Matos

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Participando do mundo de Deus por meio da oração

A oração é o retrato da alma. É nossa identidade espiritual, a impressão digital do cristão. A maneira como oramos e o conteúdo de nossas orações revelam o que pensamos sobre Deus e o que pensamos sobre nós. A melhor forma de conhecer a teologia e o caráter de uma pessoa ou de uma igreja é observar sua oração.
É por isso que gosto de meditar nas orações na Bíblia. Gosto também de observar a forma como oramos. As orações do apóstolo Paulo em sua Carta aos Efésios nos ajudam a perceber sua teologia e seu caráter. Meditando nelas, percebemos que existem duas formas de orar: a primeira é quando apresentamos nosso mundo a Deus. A segunda é quando participamos do mundo dele.
Na primeira forma de oração, que é mais comum entre nós, oramos por nossa família, trabalho, saúde, projetos e outras necessidades pessoais. Deus quase sempre é invocado para atender a essas necessidades e emergências. Elas constituem o centro das orações. São orações que dizem respeito mais a nós do que a Deus.
Outra forma de orar é quando participamos do mundo de Deus. Oramos a partir daquilo que ele tem feito, das grandes realizações de sua graça em nosso favor. É o mundo de Deus, não o meu, que constitui o centro da oração.
É assim que Paulo ora. Ele começa agradecendo as bênçãos com que Deus nos tem abençoado nas regiões celestiais em Cristo. Ele é grato pelo fato de que Deus nos escolheu em Cristo, antes da fundação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis. Louva a Deus por nos ter adotado como filhos e filhas, por sua eterna bondade. Agradece pela redenção e libertação do pecado e reconhece a riqueza da graça de Jesus Cristo. É grato a Deus pela revelação de sua vontade e pela dádiva do seu Espírito, que sustenta nossa salvação.
Ele segue orando e suplicando para que o Deus de nosso Senhor Jesus Cristo conceda à igreja espírito de sabedoria e revelação para o pleno conhecimento de Jesus Cristo. Para que Deus abra os olhos do seu povo para que compreendam a esperança da vida em Cristo, o poder da ressurreição pelo qual agora vivemos e a exaltação e glória de Cristo. Mais do que ser liberto da prisão, seu grande desejo é ver seus irmãos e irmãs tendo um conhecimento verdadeiro de Cristo e crescer em direção à sua real humanidade.
Ele coloca-se de joelhos diante do Pai e suplica para que Cristo habite nos corações do povo de Deus, transformando seu interior, para que possam, juntos, compreender a riqueza do amor de Cristo que transcende toda a compreensão humana e ser tomados de toda a plenitude de Deus. São esses os motivos de gratidão e as súplicas de Paulo.
É uma oração na qual podemos perceber a teologia e também o caráter do apóstolo. Antes de apresentar seu mundo a Deus, ele busca participar do mundo de Deus. Sua preocupação não se limita às necessidades pessoais. Não são suas prisões ou reputação que têm prioridade em suas súplicas. Sua atenção não está em sua saúde ou bem-estar. O que ele revela em sua oração é a paixão pela obra de Cristo, o desejo de ver o povo de Deus crescendo em direção a Cristo.
Podemos e devemos apresentar nosso mundo a Deus por meio da oração. Interceder pela família, trabalho, saúde e outras necessidades pessoais e comunitárias é parte de nossa resposta ao chamado de Cristo. No entanto, se permanecemos apenas conosco, atrofiamos a alma. Concebemos a oração a partir do nosso mundo e não do mundo de Deus. Das nossas necessidades e não das gloriosas riquezas de Cristo. Nossa compreensão de Deus torna-se confusa e a experiência de oração, frustrante.
A oração sempre começa com Deus e não conosco. O que Deus fez por nós em Cristo precede o que ele faz por nós em nossas necessidades diárias. Participar do mundo de Deus nos ajuda a entender a forma como Deus participa do nosso mundo. Se permanecemos com aquilo que Deus fez e segue fazendo em Cristo, crescemos na medida da estatura de Cristo.

Ricardo Barbosa

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

O resultado final

O resultado parcial de alguma doença não é a última palavra. Muitas coisas podem ainda acontecer, para aliviar ou agravar o problema. Coisas previsíveis ou não. Nem sempre é fácil esperar o resultado final de uma situação difícil. Não adianta esperar o melhor ou o pior. Sempre há surpresas a caminho, boas ou más.
Ao receber o recado de Maria e Marta de que seu amigo Lázaro estava doente, Jesus simplesmente disse: “O ‘resultado final’ dessa doença não será a morte de Lázaro. Isso está acontecendo para que Deus revele o seu poder glorioso; e assim, por causa dessa doença, a natureza divina do Filho de Deus será revelada” (Jo 11.4, NTLH).
Jesus estava muito longe de Betânia, onde Lázaro ficava cada vez pior. Porém, ele não teve pressa. Ao chegar à pequena vila três quilômetros apenas a de Jerusalém, o amigo já havia morrido e sido sepultado e já cheirava mal. De acordo com o pronunciamento de Jesus, o resultado final da doença de Lázaro não poderia ser o túmulo nem a decomposição do corpo. Qual seria? Valeria a pena esperar mais um pouco?
O resultado final não era aquela tragédia. O fôlego de vida voltaria ao defunto e a decomposição do corpo seria revertida. No entanto, isso não era tudo nem o principal. Jesus havia deixado claro que aquele processo de doença e morte desembocaria na glória de Deus e também na revelação inequívoca da natureza divina dele mesmo.
A história da formidável ressurreição de Lázaro precisa ser lida dentro do contexto. No capítulo anterior, os opositores de Jesus tiveram o atrevimento de lhe dizer: “Você, que é apenas “um ser humano”, está se fazendo de Deus (Jo 10.33, NTLH). Eles ainda não acreditavam nas duas naturezas de Cristo -- a humana e a divina. Jesus se proclamava tanto Filho do Homem como Filho de Deus. Ele era e é completamente homem e completamente Deus. Ser cristão é abraçar ambas as verdades -- a divindade e a humanidade de Jesus. Ao chorar com Maria e Marta, o Senhor mostrou que o Verbo tinha se feito carne. Ao parar diante do túmulo de seu amigo e ao gritar para o morto: “Lázaro, venha para fora!”, o Senhor mostrou que ele e o Pai são uma só pessoa (Jo 14.9). O que aconteceu em Betânia foi uma impossível marcha à ré: a morte somatopsíquica, o sepultamento e o processo da decomposição voltaram atrás. E a natureza divina de Jesus veio à tona com tanta força que os opositores de sempre tomaram a decisão de acabar com a vida de Jesus e também com a de Lázaro, testemunha viva do poder de Deus e da divindade de Jesus (Jo 11.53; 12.10).
Em caso de doença e em qualquer outro quadro de confusão, provação, tentação e medo, devemos aguardar não o resultado em processo, mas o “resultado final”. Nesta vida ou na vida futura, lembrando sempre que “tudo concorre para o bem dos que amam a Deus” (Rm 8.28)!

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

3° Congresso Lausanne de Evangelização Mundial

O maior congresso evangélico sobre missões, com 4.200 pessoas presentes e mais de 100 mil acompanhando pela internet, começou na tarde deste domingo, 17 de outubro, na Cidade do Cabo (África do Sul), com a palavra introdutória do presidente do Movimento Lausanne, Doug Birdsall. À noite, aconteceu a abertura oficial, com apresentações de dança, teatro e música dirigidas por artistas africanos. Os hinos entoados enfatizaram o senhorio de Cristo, o teatro mostrou situações de dificuldades na evangelização em cada continente e um documentário em vídeo contou a história resumida do cristianismo, do Pentecostes ao Congresso de Edimburgo em 1910.

Congresso mais pessoal
A grande novidade deste congresso está na platéia. Organizados em 650 grupos de 6 pessoas cada, os milhares de presentes puderam reunir-se, de forma mais pessoal, por quase 2 horas. Compartilharam suas histórias e expectativas. Segundo os organizadores, esta será a tônica metodológica do evento: não um grupo seleto de preletores, mas centenas de diálogos intencionais e programados sobre o conteúdo apresentado nos 6 próximos dias do congresso.

Fabrício Cunha, da Igreja Batista de Água Branca, em São Paulo, liderou um dos grupos pequenos e ficou impressionado com a comunhão entre os participantes. “Tínhamos um pastor de mais de 60 anos, que demonstrou o desejo de aprender até o fim da vida. Isso nos ensinou muito. Este é um congresso que valoriza a dimensão pessoal”.

Expectativas
O delegação brasileira conta com cerca de 90 convidados. Ultimato ouviu alguns deles sobre as expectativas para o congresso. Para Robinson Cavalcanti, bispo anglicano, ainda há uma interrogação, mas ele acredita na providência divina para que esta seja uma grande oportunidade para a igreja evangélica. Marcelo Gualberto, da Mocidade para Cristo (MPC), espera que o congresso traga mais esperança. “Quero um renovo de Deus, mais esperança para terminar bem o meu ministério. Acho que comecei bem, porém o mais importante é terminar bem”, diz. Orivaldo Pimentel, pastor da Igreja Batista Viva, de Natal (RN) espera que o congresso resgate algumas questões levantadas por Lausanne 1 (como o papel da igreja como porta-voz da justiça e da paz e o diálogo com a cultura), e não fique com as indefinições do Lausanne 2. “Mas ainda está cedo para avaliar corretamente”, ressalta. Orivaldo criticou a falta de clareza nas falas dos organizadores, mas gostou da reflexão de que o Cristianismo “é a coisa mais global que existe na globalização. Não existe mais lógica pensar em termos de norte, sul, leste, oeste, mas sim da presença global”.

Novo documento
O Primeiro Congresso Lausanne, de 1974, gerou o "Pacto de Lausanne", amplamente reconhecido como o documento de maior importância na história recente da igreja. Neste congresso será gerado "O Compromisso da Cidade do Cabo - uma declaração de fé e um chamado à ação".

John Stott e Billy Graham enviaram suas saudações pessoais, comprometendo-se a orar diariamente. Ao refletir sobre as imensas mudanças que ocorrem no mundo, Billy Graham escreveu de sua casa na Carolina do Norte, EUA: “Uma das tarefas que terão durante o Cape Town 2010 será analisar essas mudanças e avaliar o impacto delas na missão para a qual Deus nos chama hoje”. John Stott manifestou sua satisfação pessoal com o fato do Congresso ser realizado na África: “Minha oração é que vocês partilhem ricamente a bênção que Deus tem derramado sobre a Igreja neste continente assim como a dor e o sofrimento do seu povo ali”.

Para assistir ao vivo a programação do Congresso clique aqui

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Comentário do texto de Leonardo Boff publicado neste blog

Se você ainda não leu o texto na íntegra click no link abaixo

Onde está a verdadeira crise da igreja

Leonardo Boff tem a coragem de dizer aquilo que todo mundo já sabe, mas ninguém ousa falar: o papado é uma instituição humana -- tem mais a ver com César do que com Jesus de Nazaré. Quando um poder institucional se torna infalível, absoluto e sagrado, passa a se considerar acima da lei e viabiliza toda sorte de abuso espiritual, emocional, sexual e financeiro. Mas não sejamos tão rápidos em nossas críticas: entre nós, evangélicos, existem muitos pequenos papas e Vaticanos.


Osmar Ludovico da Silva, diretor de cursos de espiritualidade cristã e revisão de vida e autor de “Meditatio”

Como sempre, Boff escreve muito bem, tem grande facilidade de argumentação e um estilo cativante. Essencialmente, desde uma perspectiva protestante, ele está correto. Existe uma diferença entre a igreja instituição, a estrutura hierárquica, e a igreja como povo de Deus, o conjunto dos fiéis. No entanto, não ficam claras quais deveriam ser, na prática, essas mudanças que ele preconiza para a igreja institucional. Quanto à igreja-povo, também há uma certa indefinição, por causa do compromisso de Boff com a teologia da libertação. As ênfases mais recentes desse teólogo têm se tornado um tanto sincretistas, misturando a fé cristã com preocupações ecológicas e com a ideologia da Nova Era. Mesmo assim, as críticas que ele faz ao modelo monárquico e centralizador da Cúria Romana me parecem válidas.

Alderi Souza de Matos, historiador, autor de A Caminhada Cristã na História



O artigo é fundamentado primorosamente tanto na questão histórica quanto no posicionamento atual do Vaticano e no ministério do romano pontífice. Boff sabe das coisas e sabe muito bem. Caso fosse mais alinhado com as Escrituras, poderia ter sido um Lutero do século 21.

Luiz Fernando, pastor da Igreja Presbiteriana Central de Itapira e presidente do Presbitério de São João da Boa Vista, SP



As palavras de Boff confirmam aquilo que os Evangelhos e a história revelam: a presença da igreja não indica, sempre, a presença de Jesus.

Sérgio Andrade, deão da Catedral Anglicana da Santíssima Trindade e coordenador da ONG Diaconia, em Recife, PE

Minha impressão sobre o artigo: surpreendente! Extraordinário!

Key Yuasa, pastor da Igreja Evangélica Holiness, SP

O texto, embora dirigido à denominação secular conhecida como Igreja Católica Apostólica Romana, é um alerta em relação à organização institucional e estrutural da igreja cristã em todas as suas ramificações denominacionais. O autor não nega a necessidade organizacional da instituição. Porém, questiona a sua fundamentação histórica e teológica (nos moldes existentes), assim como a principal razão de existir da igreja -- sua relevância na vida das pessoas e para o reino de Deus, nesse modelo que enfrenta crises de toda ordem...
Esse questionamento de Boff, além de apropriado, é oportuno e deve ser a preocupação permanente das lideranças de todas as denominações cristãs. Pois todas elas correm os mesmos riscos de criar estruturas (de forma consciente ou não) para promover outros interesses, que não os do reino de Deus. Parabéns pela coragem, pela clareza e contextualidade.

Nilo Wachholz, pastor luterano (IELB), jornalista e editor do “Mensageiro Luterano”

A síntese boffeana, desde “Igreja: Carisma e Poder”, é perfeita. Penso, no entanto, que ela idiliza os fiéis. Quando vejo certas manifestações de fé na perspectiva católica, tanto em Roma quanto nas comunidades locais por aqui, eu me pergunto: o que foi feito do cristianismo?
Porém, sinto o mesmo em relação aos estelionatários da cura, com suas 24 horas de exposição mediática para trocar salvação por dinheiro. Precisamos de mais coragem para denunciar os falsários ditos evangélicos. Boff faz a denúncia lá. Devemos fazer também o nosso dever de casa cá. Fui uma vez a um desses cultos pseudopentecostais. Em nenhum momento se falou de Jesus, mas apenas se pediu às pessoas que gritassem para si mesmas: “Eu vou conseguir!”. Voltei horrorizado, mas fui aconselhado a, por razões éticas, nada comentar. Lamento por mim mesmo ter feito isso. Preciso parar de conter a minha indignação.
Mais: preciso olhar para a minha denominação e para a minha congregação e me perguntar honestamente se são realmente cristãs. Eu mesmo preciso me perguntar se, como homem e pastor, sou mesmo cristão. Será que Jesus me vê como servo bom e fiel? Não posso olhar para as mazelas dos outros e lamber os beiços de felicidade, como se eu fosse realmente diferente.

Israel Belo de Azevedo, pastor da Igreja Batista Itacuruçá, no Rio de Janeiro

Esquecendo alguns exageros de Boff (principalmente dos que pretendiam interpretá-lo e usá-lo) no que concerne à Teologia da Libertação, dou graças a Deus pelo testemunho que moveu Boff a dar em seu artigo intitulado “Onde está a verdadeira crise da igreja”. Em meu entendimento, ele assimilou, consciente ou subsconscientemente, o que os pregadores calvinistas fiéis, de maior projeção, têm propugnado. Ocasionalmente Deus levanta nas fileiras da Igreja Romana vultos assim. Louvado seja Deus!

Odayr Olivetti, responsável pela seção “Consultório bíblico”, do jornal “Brasil Presbiteriano”

A ideia de uma igreja mais simples, mais fraterna, mais ministerial, com o rosto mais humano, está intimamente ligada ao propósito inicial de Jesus. Os acertos, dentre outros, destacados por Leonardo Boff, merecem nossa consideração, se levarmos em conta a situação do cristianismo em nosso continente, enfraquecido pela presença dos novos “césares” (apóstolos, bispos, sacerdotes, pastores e líderes mercantilistas) que desfiguram a igreja do Senhor pelo barateamento que patrocinam do conteúdo do evangelho e pela ânsia do poder-privilégio. De fato, a maior crise da igreja-instituicão está relacionada à ausência de incidência profética e relevância para o atual momento histórico.

Marco Antonio de Oliveira, pastor da Catedral Metodista do Rio de Janeiro



Uma “instituição cristã” é uma contradição de termos; é como uma bola quadrada, uma paralela que se cruza. Instituição, por natureza, presume hierarquia, controle e conservação. Os cristãos institucionais, institucionalizados ou institucionalizantes -- sejam católicos, evangélicos etc. -- deveriam mudar de religião, pois a mensagem do reino é anárquica, na plena concepção do termo de negação do poder. Institucional, inclusive.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Não quero ser misericordioso só comigo!

A partir de hoje, com a ajuda de Deus, vou ser tão misericordioso com os outros como tenho sido comigo mesmo. Todos temos a mesma natureza pecaminosa. Todos carregamos a mesma bagagem pecaminosa. Deixarei de condenar os outros e perdoar a mim mesmo. Porei um fim nessa tendência de buscar atenuantes para o meu pecado e agravantes para o pecado alheio. Farei isso não para diminuir o peso do meu pecado ou o peso do pecado do outro. Colocarei o dedo em riste para ele e para mim. Enaltecerei a graça de Deus para mim e para ele. Afinal, os dois salmos exatamente iguais (Salmos 14 e 53) dizem: “Todos se extraviaram e juntamente se corromperam”.
Devo essa mudança não só à Palavra e não só ao Espírito. Tenho lido alguns depoimentos que me abriram os olhos. Sêneca, contemporâneo de Jesus e conselheiro de Nero, dizia que todos somos perversos: “O que um reprova no outro, ele o achará em seu próprio peito, [pois] vivemos entre perversos, sendo nós mesmos perversos”. O moralista inglês Samuel Johnson, autor de “A Vaidade dos Desejos Humanos” (1749), explicou que “cada qual sabe de si mesmo o que ele não ousa contar ao seu mais íntimo amigo”.
Uma das declarações mais enfáticas sobre o assunto é da lavra do escritor americano William Saroyan: “O homem mau deve ser perdoado todos os dias. Deve ser amado porque alguma coisa de cada um de nós está no pior homem do mundo e alguma coisa dele está em cada um de nós. Ele e nós somos ele. Nenhum de nós é separado de qualquer outro. A prece do camponês é minha prece; o crime do assassino é o meu crime”.
O médico francês Maurice Fleury confessa: “Depois de percorrer todos os escaninhos da alma humana, cheguei a uma conclusão: tenhamos piedade uns dos outros”. Já o escritor sérvio Vidosav Stevanovic faz bem em lembrar que “o mal, como o bem, faz parte da condição humana. [Portanto], antes de combater o mal nos demais, cada um deve combatê-lo no interior de si mesmo”.
O esforço que estou resolvido a fazer de hoje em diante é uma consequência natural daquele conselho de Jesus de remover primeiro a viga que está em meu próprio olho para, depois, remover o pequeno cisco que está no olho dos outros (Mt 7.1-5). Já que preciso de mais misericórdia do que quem tem o cisco, por que perder a paciência com o próximo? Por que cobrar mais dele do que de mim? Por que não perdoar, se eu fui perdoado? Que o Senhor me ajude!

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Onde está a verdadeira crise da igreja

A crise da pedofilia na igreja romano-católica não é nada em comparação à verdadeira crise -- essa sim, estrutural -- que concerne à sua institucionalidade histórico-social. Não me refiro à igreja como comunidade de fiéis. Esta continua viva apesar da crise, se organizando de forma comunitária e não piramidal como a Igreja da Tradição. A questão é: que tipo de instituição representa essa comunidade de fé? Como se organiza?
Atualmente, ela comparece como defasada da cultura contemporânea e em forte contradição com o sonho de Jesus, percebida pelas comunidades que se acostumaram a ler os Evangelhos em grupos e então fazer suas análises.
Dito de forma breve, mas não caricata: a instituição-igreja se sustenta sobre duas formas de poder: um secular, organizativo, jurídico e hierárquico, herdado do Império Romano, e outro espiritual, assentado sobre a teologia política de Santo Agostinho acerca da Cidade de Deus, que ele identifica com a instituição-igreja. Em sua montagem concreta, não é tanto o evangelho ou a fé cristã que contam, mas esses poderes, considerados como um único “poder sagrado” (“potestas sacra”) também na forma de sua plenitude (“plenitudo potestatis”) no estilo imperial romano da monarquia absolutista. César detinha todo o poder: político, militar, jurídico e religioso. O Papa, semelhantemente, detém igual poder: “ordinário, supremo, pleno, imediato e universal” (Cânon 331), atributos só cabíveis a Deus. Institucionalmente, o Papa é um César batizado.
Esse poder que estrutura a instituição-igreja foi se constituindo a partir do ano 325 com o Imperador Constantino e oficialmente instaurado em 392, quando Teodósio, o Grande (+395), impôs o cristianismo como a única religião de Estado. A instituição-igreja assumiu esse poder com todos os títulos, honrarias e hábitos palacianos que perduram até os dias de hoje no estilo de vida dos bispos, cardeais e papas.
Esse poder ganhou, com o tempo, formas cada vez mais totalitárias e até tirânicas, especialmente a partir do Papa Gregório VII, que em 1075 se autoproclamou senhor absoluto da igreja e do mundo. Radicalizando, Inocêncio III (+1216) se apresentou não apenas como sucessor de Pedro, mas também como representante de Cristo. Seu sucessor, Inocêncio IV (+1254), deu o último passo e se anunciou como representante de Deus e por isso senhor universal da Terra que podia distribuir porções dela a quem quisesse, como depois foi feito aos reis de Espanha e Portugal no século 16. Só faltava proclamar o Papa infalível, o que ocorreu sob Pio IX em 1870. O círculo se fechou.
Ora, este tipo de instituição encontra-se hoje num profundo processo de erosão. Depois de mais de 40 anos de continuado estudo e meditação sobre a igreja (meu campo de especialização), suspeito que chegue o momento crucial para ela: ou corajosamente muda e assim encontra seu lugar no mundo moderno e metaboliza o processo acelerado de globalização e aí terá muito a dizer, ou se condena a ser uma seita ocidental, cada vez mais irrelevante e esvaziada de fiéis. O projeto atual de Bento XVI de reconquista da visibilidade da Igreja contra o mundo secular é fadado ao fracasso se não proceder a uma mudança institucional. As pessoas de hoje não aceitam mais uma igreja autoritária e triste, como se fosse ao próprio enterro. Mas estão abertas à saga de Jesus, ao seu sonho e aos valores evangélicos.
Esse crescendo na vontade de poder, imaginado ilusoriamente vindo diretamente de Cristo, impede qualquer reforma da instituição-igreja, pois tudo nela seria divino e intocável. Realiza-se plenamente a lógica do poder, descrita por Hobbes em seu “Leviatã”: “O poder quer sempre mais poder, porque não se pode garantir o poder senão buscando mais e mais poder”. Uma instituição-igreja que busca assim um poder absoluto fecha as portas ao amor e se distancia dos sem-poder, dos pobres. A instituição perde o rosto humano e se faz insensível aos problemas existenciais, como da família e da sexualidade.
O Concílio Vaticano II (1965) procurou curar esse desvio pelos conceitos de Povo de Deus, de comunhão e de governo colegial. Mas o intento foi abortado por João Paulo II e Bento XVI, que voltaram a insistir no centralismo romano, agravando a crise.
O que um dia foi construído pode ser num outro, desconstruído. A fé cristã possui força intrínseca de, nesta fase planetária, encontrar uma forma institucional mais adequada ao sonho de seu fundador e mais consentânea ao nosso tempo.

Leonardo Boff

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Crescimento e oposição

Alguns deles, todavia, cipriotas e cireneus foram a Antioquia e começaram a falar também aos gregos, contando-lhes as boas novas a respeito do Senhor Jesus. Atos 11.20
Lucas relata que alguns evangelistas foram para o norte, em direção à costa, chegando até a Fenícia, Chipre e Antioquia, anunciando a mensagem “apenas aos judeus” (v. 19).
Mas alguns que foram para Antioquia “começaram a falar também aos gregos” (v. 20).
Não sabemos se eram gregos pagãos, gregos de fala hebraica ou uma mistura de raças. Antioquia era com certeza um lugar bastante apropriado para a primeira igreja internacional e um trampolim para o avanço missionário em escala mundial, pois era uma cidade grande e cosmopolita.
As notícias desse crescimento chegaram aos ouvidos dos líderes da igreja em Jerusalém.
Assim como eles haviam enviado Pedro e João para investigar o que estava acontecendo entre os samaritanos, enviaram Barnabé a Antioquia. Ali chegando, e vendo a graça de Deus nas vidas transformadas, ele ficou alegre e os animou a permanecerem fiéis ao Senhor. Em seguida ele foi a Tarso e trouxe Saulo para Antioquia, para ensinar ao grande número de convertidos.
Porém, esse significativo crescimento da igreja provocou a oposição do rei Herodes Agripa I, filho de Herodes, o Grande. Ele mandou decapitar o apóstolo Tiago e colocou na prisão o apóstolo Pedro. A situação era crítica, mas os membros da igreja se dedicaram à oração, e Pedro foi milagrosamente libertado. Na manhã seguinte, no exato momento em que Pedro seria julgado e, provavelmente, executado, ele não foi localizado. O plano de Herodes havia falhado.
Lucas continua sua narrativa até a derrota final de Herodes. Os habitantes de Tiro e Sidom tiveram um desentendimento com o rei e procuravam ter uma audiência com ele para pedir paz. No dia marcado, o rei censurou a multidão, que bradava: “É voz de deus, e não de homem” (12.22). Visto que Herodes não glorificou a Deus, ele foi ferido e morreu.
Lucas termina citando uma de suas frases preferidas: “Entretanto, a palavra de Deus continuava a crescer e a espalhar-se” (v. 24). O talento literário de Lucas é evidente. O capítulo começa com Tiago morto, Pedro na prisão, e Herodes triunfando; e termina com Herodes morto, Pedro livre e a Palavra de Deus triunfando. Só o poder de Deus pode destruir os planos hostis dos homens e substituí-los pelos seus próprios planos.

Leitura recomendada: Atos 12.1-5

Retirada de A Bíblia Toda, o Ano Todo (Editora Ultimato, 2007).

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Necessidades básicas

Não se preocupem com sua própria vida, quanto ao que comer ou beber; nem com seu próprio corpo, quanto ao que vestir. Mateus 6.25
A adoção aparece no Sermão do Monte como a base da vida de fé, isto é, a vida de confiança em Deus para a provisão das necessidades materiais de todo aquele que busca o reino de Deus e sua justiça.
Creio ser desnecessário observar que uma pessoa pode viver uma vida de fé sem ter de renunciar a um bom emprego, embora alguns sejam chamados a fazer isto. No entanto, todos os cristãos são chamados a uma vida de fé, no sentido de seguir a vontade de Deus a qualquer custo, confiando-lhe todas as conseqüências.
E mais cedo ou mais tarde, todos são tentados a colocar seu status e segurança, em termos humanos, acima da lealdade ao chamado de Deus. Então, se resistirem a essa tentação, serão imediatamente tentados a se preocupar com as prováveis conseqüências de sua decisão, principalmente quando seguir a Jesus os obrigar a perder parte da segurança ou prosperidade que, de outro modo, poderiam desfrutar.
Aos que são tentados dessa forma em sua vida de fé, Jesus oferece a verdade da adoção de modo que possam suportar a tentação.

Para refletir: Como a certeza da adoção na família de Deus pode ajudá-lo a lidar com as tentações descritas acima?

Retirada de O Conhecimento de Deus ao Longo do Ano (Editora Ultimato, 2008).

terça-feira, 28 de setembro de 2010

O pai primeiro

Portanto, sejam imitadores de Deus, como filhos amados. Efésios 5.1

O Sermão do Monte traz três princípios gerais de conduta que nosso Senhor apresenta.
O primeiro princípio é imitar o Pai. A conduta dos filhos deve retratar sua família. Em outras palavras, Jesus está querendo dizer: "Sejam santos, porque eu sou santo" (1Pe 1.16) — e dizendo-o em termos familiares.
O segundo princípio é glorificar o Pai. “Assim brilhe a luz de vocês diante dos homens, para que vejam as suas boas obras e glorifiquem ao Pai de vocês, que está nos céus” (Mateus 5.16). Os cristãos devem se comportar em público de modo a trazer glória ao seu Pai que está no céu.
O terceiro princípio é agradar o Pai. Em Mateus 6.1-18, Jesus enfatiza a necessidade de viver com o único objetivo de agradar a Deus. O propósito da promessa de recompensa feita pelo Senhor (6.4, 6, 18) não é nos fazer pensar em termos de retribuição, mas simplesmente nos lembrar de que o nosso Pai celestial nota e tem especial prazer quando concentramos nossos esforços em agradar somente a ele.
Para escrever: Releia trechos do Sermão do Monte (Mateus 5 a 7) e anote como você poderia se sentir desafiado a imitar, glorificar e agradar o Pai.

Retirada de O Conhecimento de Deus ao Longo do Ano (Editora Ultimato, 2008).

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Inveja

“Ciúme é querer manter o que se tem; cobiça é querer o que não se tem; inveja é querer que o outro não tenha.” (Zuenir Ventura)
Diferentemente da ira ou da gula, a inveja é uma condição emocional sorrateira. Ela queima como fogo de palha, por baixo, sem fumaça.
A ira produz erupções violentas; a gula compromete nosso manequim; a preguiça faz nosso chefe reclamar; a luxúria nos afasta até da família mais liberal; mas a inveja dificilmente aparece, pois o comportamento de um invejoso não difere muito do de um crítico, de um ressentido, de um coração magoado.
Nenhuma dessas condições é, propriamente, inveja. Porém, esta pode estar “orquestrando” a todas aquelas, por trás. Ela pode até mesmo produzir elogios e dar presentes. Este foi o caso de Saul, em relação a Davi. O rei entregou ao rapaz um comando em seu exército e lhe ofereceu a mão de sua filha em casamento -- na esperança de fazê-lo “ir a óbito” (1Sm 18.5-29).
Como não sabe criar, o diabo distorce. Então, para produzir a inveja, ele corrompeu a admiração, transformando-a no segundo pecado mais daninho que o ser humano já provou. Admirar é a capacidade de se deixar impactar pelo excepcional, pelo espantoso, de uma forma generosa, abnegada e contente.
Diz-se que a inveja só perde para o orgulho em poder de destruição, em poder de potencializar o que há de pior no ser humano. A inveja é o maestro de nossos outros pecados. E corta para os dois lados: o do invejado e o do invejoso. A inveja é potencialmente homicida e suicida ao mesmo tempo. Esse potencial raramente atinge seu clímax, revelando-se apenas como sentimento mesquinho, do tipo “se não posso ir a esse churrasco, que chova”.
Esse pecado advém de uma necessidade de nos compararmos com os outros. E ao encontrarmos neles motivos de admiração, sofremos, em vez de simplesmente nos alegrarmos. E aí está a obra do diabo: o invejoso sempre se compara e sofre com o bem dos outros que, para ele, é sempre maior e melhor (um problema de autoestima). A grama do quintal do vizinho é sempre mais verde.
Assim, tudo começa com algo vindo de Deus: a capacidade de admirar e de se admirar. E nunca admiramos o trivial ou mesmo algo bom que tenhamos ou sejamos. Normalmente, só o narcisista admira algo que ele próprio tem ou é. Admira-nos aquilo que não encontramos em nós mesmos, como capacidades artísticas, dons, beleza, inteligência, posses etc. Em especial, quando alguém nos “vence” em algum ponto em que nos consideramos fortes.
É aí que o inimigo semeia a inveja, fazendo com que essa admiração se transforme de alegria em sofrimento, sem muita consciência da razão. Passo seguinte, inconscientemente desejamos “vencer” essa competição. Porém, o inimigo não nos dá força para tal. Sugere-nos, ao contrário, o expediente de Caim. Ou o de Saul; com a língua desempenhando o papel da lança. Ou, se precisarmos de ajuda, que fundemos a fraternidade dos “irmãos de José”.
Sentir inveja é pecado. Porém, tornar-se invejoso é ainda mais grave. Vemos em Provérbios 14.30 que ela nos faz adoecer: “a inveja é a podridão dos ossos”. E isso acontece quando esse pecado se instala em nossa alma. De alguma forma perversa, essa atitude “nos ajuda a viver”, criando em nosso coração mecanismos de autojustificação. E o invejoso passa a achar que “o que fizeram com ele justifica sua reação”. Afinal, todos lhe estão devendo.
Aninhada na placenta do nosso coração, ela agora se multiplica em ninhada. Surgem, por exemplo, o ódio, a ira, o homicídio e uma infinidade de pequenas transgressões (cometidas pelo invejoso covarde), com um só objetivo: humilhar ou destruir o invejado. Vêm, então, a difamação, a calúnia, o desmerecimento, a crítica destrutiva, a palavra amarga e uma indisfarçável alegria com o infortúnio do outro. Do “inimigo”.
Resultado, esse pecado nos lança num mundo de trevas. Já não nos alegramos com o que temos ou somos (a não ser que ninguém mais tenha ou seja -- mas aí já não tem graça); já não somos gratos a Deus pelo que nos deu (como pôde o Senhor abençoar aquela criatura!?); já não somos edificantes, e sim desconstrutores. Passamos boa parte da vida a nos comparar com os outros. E nossa baixa autoestima nos faz “admirar” as coisas boas que encontramos neles -- e isso nos consome! Está ficando pesado? Uma paradinha.
Dois amigos passeavam na calçada quando um deles chutou uma espécie de lata velha. Era uma lâmpada de gênio, que, tendo sido acordado, apareceu e disse: “Estive preso nessa lâmpada por muitos séculos e estou muito cansado. Portanto, vocês têm direito a apenas um pedido. Façam logo, pois não tenho tempo a perder”. Um dos amigos, animado, pediu para ficar rico, e foi logo atendido pelo gênio. O segundo amigo viu aquilo tudo e pediu: “Quero que meu amigo volte ao que ele era antes”.
Outra versão, mais dramática, diz que o gênio impôs uma condição para o pedido único: tudo o que um deles pedisse seria dado também e em dobro para o outro. Aí, o amigo invejoso se adiantou e pediu: “Quero que você me tire um olho”.
Aí está a sabedoria popular a nos ensinar que o invejoso não consegue construir. Bastaria aproveitar a chance única e ser muito feliz. Porém, a felicidade do companheiro torna-se um problema. E ele prefere destruir. Nem que precise sofrer.
Mas nem tudo está perdido. Deus colocou recursos espirituais à nossa disposição para vencermos a inveja. Eis alguns, encontrados na literatura como virtudes antagônicas a esse pecado: amor, gratidão, compaixão, misericórdia e lamento.
Examinando cada uma delas, faço minha opção pelo “amor diligente”. Aquele amor dinâmico, capaz de me transformar, pela busca do poder do Espírito de Deus. Ouça Jesus: “...Eu, porém, vos digo: amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem”. Ouça Paulo: “Abençoai os que vos perseguem, abençoai e não amaldiçoeis”. Ainda Paulo: “...Pelo contrário, se o teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer; se tiver sede, dá-lhe de beber...”
Se eu examinar meu próprio coração* e me descobrir invejoso e, por isso mesmo, agredido, humilhado e perseguido por gente que, de “tão boa”, se tornou meu algoz -- e quiser mudar --, buscarei o Senhor em meu quarto e lhe pedirei que me ajude a abençoar, a falar bem “pelas costas”, a elogiar esse “inimigo”. E pedirei mais: que Deus me dê oportunidades e meios (emocionais) de lhe “lavar os pés”. Sabemos que, na medida da resposta de Deus, a minha redenção se manifestará na forma de serviços a esse “inimigo”. Serviços que remodelarão meu coração egoísta em abnegado e generoso, capaz de, solidariamente, alegrar-se com os que se alegram e chorar com os que choram. Serviços como aqueles com que meu Mestre serviu. E nessa atitude, “teu Pai, que vê em secreto, te recompensará” (Mt 6.4, 6 e 18).
Assim, mais uma vez, da cruz de Cristo e também da minha; da humilhação, agora voluntária, há de vir a vitória.

* O Ministério da Saúde Espiritual adverte: este texto não deve ser utilizado em diagnósticos de terceiros. Serve apenas para introspecção. Não desaparecendo os sintomas, procure seu pastor.

• Rubem Amorese

Tempo ordinário

Um anjo do Senhor falou a Filipe, dizendo: Dispõe-te e vai para o lado do Sul, no caminho que desce de Jerusalém a Gaza; este se acha deserto. Ele se levantou e foi. Atos 8.26
Viver com Deus em tempos extraordinários não parece ser difícil. O problema é viver em obediência a Deus quando tudo parece ordinário. O difícil é sentir-se no centro da vontade de Deus quando nos vemos rodeados por um cenário comum como o de segunda a sábado.
Filipe viveu o extraordinário em Samaria, como já vimos. No entanto, ele é enviado por Deus para um lugar deserto. Em contraste com Samaria, nada pode parecer mais ordinário do que o caminho deserto para Gaza. Poderia ser realmente este o lugar de Deus para Filipe?
A resposta é sim. Num caminho deserto Deus ainda está com Filipe, num encontro sem milagres ou manifestações Deus ainda está fazendo grandes obras. Na conversão de um só homem Deus se regozija tanto quanto na conversão de uma multidão.
Em nossa jornada espiritual, precisamos resgatar o lugar do ordinário. Em meio ao ordinário, Deus continua falando, operando e nos usando. Precisamos, então, aprender a ver e a ouvir a Deus não só no tempo extraordinário, mas também naquele caracterizado pelo ordinário.
Abramos nossos olhos e sensibilizemos nossos corações para perceber que Deus está também em nosso caminho, mesmo quando seu aspecto é de um deserto, mesmo quando, diante de nós, o cenário é rotineiro.
Retirada de Devocionais Para Todas as Estações (Editora Ultimato, 2009).

Casamento - Vale a pena?

Naquela noite, enquanto minha esposa servia o jantar, eu segurei sua mão e disse: "Tenho algo importante para te dizer". Ela se sentou e jantou sem dizer uma palavra. Pude ver sofrimento em seus olhos.
De repente, eu também fiquei sem palavras. No entanto, eu tinha que dizer a ela o que estava pensando. Eu queria o divórcio. E abordei o assunto calmamente.
Ela não parecia irritada pelas minhas palavras e simplesmente perguntou em voz baixa: "Por quê?"
Eu evitei respondê-la, o que a deixou muito brava. Ela jogou os talheres longe e gritou "você não é homem!" Naquela noite, nós não conversamos mais. Pude ouví-la chorando. Eu sabia que ela queria um motivo para o fim do nosso casamento. Mas eu não tinha uma resposta satisfatória para esta pergunta. O meu coração não pertencia a ela mais e sim a Jane. Eu simplesmente não a amava mais, sentia pena dela.
Me sentindo muito culpado, rascunhei um acordo de divórcio, deixando para ela a casa, nosso carro e 30% das ações da minha empresa.

Ela tomou o papel da minha mão e o rasgou violentamente. A mulher com quem vivi pelos últimos 10 anos se tornou uma estranha para mim. Eu fiquei com dó deste desperdício de tempo e energia mas eu não voltaria atrás do que disse, pois amava a Jane profundamente. Finalmente ela começou a chorar alto na minha frente, o que já era esperado. Eu me senti libertado enquanto ela chorava. A minha obsessão por divórcio nas últimas semanas finalmente se materializava e o fim estava mais perto agora.

No dia seguinte, eu cheguei em casa tarde e a encontrei sentada na mesa escrevendo. Eu não jantei, fui direto para a cama e dormi imediatamente, pois estava cansado depois de ter passado o dia com a Jane.
Quando acordei no meio da noite, ela ainda estava sentada à mesa, escrevendo. Eu a ignorei e voltei a dormir.
Na manhã seguinte, ela me apresentou suas condições: ela não queria nada meu, mas pedia um mês de prazo para conceder o divórcio. Ela pediu que durante os próximos 30 dias a gente tentasse viver juntos de forma mais natural possivel. As suas razões eram simples: o nosso filho faria seus examos no próximo mês e precisava de um ambiente propício para prepar-se bem, sem os problemas de ter que lidar com o rompimento de seus pais.

Isso me pareceu razoável, mas ela acrescentou algo mais. Ela me lembrou do momento em que eu a carreguei para dentro da nossa casa no dia em que nos casamos e me pediu que durante os próximos 30 dias eu a carregasse para fora da casa todas as manhãs. Eu então percebi que ela estava completamente louca mas aceitei sua proposta para não tornar meus próximos dias ainda mais intoleráveis.

Eu contei para a Jane sobre o pedido da minha esposa e ela riu muito e achou a idéia totalmente absurda. "Ela pensa que impondo condições assim vai mudar alguma coisa; melhor ela encarar a situação e aceitar o divórcio" ,disse Jane em tom de gozação.

Minha esposa e eu não tínhamos nenhum contato físico havia muito tempo, então quando eu a carreguei para fora da casa no primeiro dia, foi totalmente estranho. Nosso filho nos aplaudiu dizendo "O papai está carregando a mamãe no colo!" Suas palavras me causaram constrangimento. Do quarto para a sala, da sala para a porta de entrada da casa, eu devo ter caminhado uns 10 metros carregando minha esposa no colo. Ela fechou os olhos e disse baixinho "Não conte para o nosso filho sobre o divórcio" Eu balancei a cabeça mesmo discordando e então a coloquei no chão assim que atravessamos a porta de entrada da casa. Ela foi pegar o ônibus para o trabalho e eu dirigi para o escritório.

No segundo dia, foi mais fácil para nós dois. Ela se apoiou no meu peito, eu senti o cheiro do perfume que ela usava. Eu então percebi que há muito tempo não prestava atenção a essa mulher. Ela certamente tinha envelhecido nestes últimos 10 anos, havia rugas no seu rosto, seu cabelo estava ficando fino e grisalho. O nosso casamento teve muito impacto nela. Por uns segundos, cheguei a pensar no que havia feito para ela estar neste estado.

No quarto dia, quando eu a levantei, senti uma certa intimidade maior com o corpo dela. Esta mulher havia dedicado 10 anos da vida dela a mim.

No quinto dia, a mesma coisa. Eu não disse nada a Jane, mas ficava a cada dia mais fácil carregá-la do nosso quarto à porta da casa. Talvez meus músculos estejam mais firmes com o exercício, pensei.

Certa manhã, ela estava tentando escolher um vestido. Ela experimentou uma série deles mas não conseguia achar um que servisse. Com um suspiro, ela disse "Todos os meus vestidos estão grandes para mim". Eu então percebi que ela realmente havia emagrecido bastante, daí a facilidade em carregá-la nos últimos dias.

A realidade caiu sobre mim com uma ponta de remorso... ela carrega tanta dor e tristeza em seu coração..... Instintivamente, eu estiquei o braço e toquei seus cabelos.

Nosso filho entrou no quarto neste momento e disse "Pai, está na hora de você carregar a mamãe". Para ele, ver seu pai carregando sua mão todas as manhãs tornou-se parte da rotina da casa. Minha esposa abraçou nosso filho e o segurou em seus braços por alguns longos segundos. Eu tive que sair de perto, temendo mudar de idéia agora que estava tão perto do meu objetivo. Em seguida, eu a carreguei em meus braços, do quarto para a sala, da sala para a porta de entrada da casa. Sua mão repousava em meu pescoço. Eu a segurei firme contra o meu corpo. Lembrei-me do dia do nosso casamento.

Mas o seu corpo tão magro me deixou triste. No último dia, quando eu a segurei em meus braços, por algum motivo não conseguia mover minhas pernas. Nosso filho já tinha ido para a escola e eu me vi pronunciando estas palavras: "Eu não percebi o quanto perdemos a nossa intimidade com o tempo".

Eu não consegui dirigir para o trabalho.... fui até o meu novo futuro endereço, saí do carro apressadamente, com medo de mudar de idéia...Subi as escadas e bati na porta do quarto. A Jane abriu a porta e eu disse a ela "Desculpe, Jane. Eu não quero mais me divorciar".

Ela olhou para mim sem acreditar e tocou na minha testa "Você está com febre?" Eu tirei sua mão da minha testa e repeti "Desculpe, Jane. Eu não vou me divorciar. Meu casamento ficou chato porque nós não soubemos valorizar os pequenos detalhes da nossa vida e não por falta de amor. Agora eu percebi que desde o dia em que carreguei minha esposa no dia do nosso casamento para nossa casa, eu devo segurá-la até que a morte nos separe.

A Jane então percebeu que era sério. Me deu um tapa no rosto, bateu a porta na minha cara e pude ouví-la chorando compulsivamente. Eu voltei para o carro e fui trabalhar.

Na loja de flores, no caminho de volta para casa, eu comprei um buquê de rosas para minha esposa. A atendente me perguntou o que eu gostaria de escrever no cartão. Eu sorri e escrevi: "Eu te carregarei em meus braços todas as manhãs até que a morte nos separe".

Naquela noite, quando cheguei em casa, com um buquê de flores na mão e um grande sorriso no rosto, fui direto para o nosso quarto onde encontrei minha esposa deitada na cama - morta.
Minha esposa estava com câncer e vinha se tratando a vários meses, mas eu estava muito ocupado com a Jane para perceber que havia algo errado com ela. Ela sabia que morreria em breve e quis poupar nosso filho dos efeitos de um divórcio - e prolongou a nossa vida juntos proporcionando ao nosso filho a imagem de nós dois juntos toda manhã. Pelo menos aos olhos do meu filho, eu sou um marido carinhoso.

Os pequenos detalhes de nossa vida são o que realmente contam num relacionamento. Não é a mansão, o carro, as propriedades, o dinheiro no banco. Estes bens criam um ambiente propício a felicidade mas não proporcionam mais do que conforto. Portanto, encontre tempo para ser amigo de sua(seu) esposa(o), faça pequenas coisas um para o outro para mantê-los próximos e íntimos. Tenham um casamento real e feliz!

Se você não dividir isso com alguém, nada de ruim vai te acontecer. Mas se escolher enviar para alguém, talvez salve um casamento. Muitos fracassados na vida são pessoas que não perceberam que estavam tão perto do sucesso e preferiram desistir..

UM CASAMENTO CENTRADO EM CRISTO É UM CASAMENTO QUE DURA UMA VIDA TODA.

Extraido do blog: prpaulofabricio.blogspot.com

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Florescendo a todo tempo

Naquele dia, levantou-se grande perseguição contra a igreja em Jerusalém. Entrementes os que foram dispersos iam por toda parte pregando a palavra. Atos 8.1, 4
Há tempos li um livro chamado Floresça Onde Está Plantado. Ele desafia-nos a viver um testemunho contagiante, independentemente do contexto.
Sempre me chamou a atenção a maneira estilumante como a igreja de Jerusalém vivia (At 2.42-47; 4.32-35). No entanto, o cristianismo desses primeiros cristãos mostrou-se ainda mais surpreendente quando, em meio à dispersão, suas vidas continuaram a florescer onde quer que estivessem.
Em meio aos que foram dispersos, encontramos Filipe, o mesmo que, em Atos 6.5, foi designado para servir as mesas. Apesar das circunstâncias desfavoráveis que o levaram a sair de Jerusalém e da impossibilidade de continuar exercendo seu ministério como havia sido designado, Filipe continuou a servir e dedicar-se no novo contexto.
A maioria de nós não se sente muito confortável com mudanças. Mudanças nos levam a zonas de desconforto, onde não temos o controle da situação. No entanto, parece que Filipe, quando levado pelas circunstâncias a um novo contexto, encarou as mudanças como oportunidades e, não, como ameaças. Em meio à perseguição a vida de Filipe floresceu. Ele viveu novas experiências e descobriu novos horizontes para o serviço cristão.
Aceitemos o lugar no qual Deus nos tem colocado ou para o qual nos tem enviado e ocupemo-nos com o desafio de ali florescer.


Retirada de Devocionais Para Todas as Estações (Editora Ultimato, 2009).

Tempo extraordinário

Filipe, descendo à cidade de Samaria, anunciava-lhes a Cristo. As multidões atendiam, unânimes, às coisas que Filipe dizia, ouvindo-as e vendo os sinais que ele operava. Atos 8.5-6
Nossas vidas são caracterizadas por tempos ordinários e tempos extraordinários. Na maior parte da vida, lidamos com o ordinário. Levantamos, trabalhamos, nos divertimos e dormimos. O ordinário é rotineiro, mas não insignificante. Em meio ao ordinário emerge o extraordinário como o aniversário, o casamento ou o nascimento de um filho.
A jornada espiritual não é muito diferente. Nossa relação diária com Deus é envolvida pelo ordinário. Lemos a Palavra, oramos nos dedicando ao Senhor, intercedemos pelos outros e saímos para viver em obediência à fé. Algumas vezes, nosso ordinário é repentinamente envolvido pelo extraordinário. Ouvimos Deus de forma nunca antes acontecida, experimentamos sua presença de maneira maravilhosa, somos usados de forma tremenda.
Samaria representa este tempo extraordinário na vida de Felipe. Em Jerusalém ele dedicava-se ao serviço às viúvas – algo bem rotineiro. Em Samaria sua vida é marcada pelo extraordinário — multidões atendem unânimes, enfermos são curados e demônios lhe obedecem.
Tempos extraordinários são presentes de Deus. Eles não podem ser comprados ou exigidos como pensou Simão, o mágico (At 8 18-20) e não são perpétuos como queria Pedro (Mt 17.1-8).
Ocupemo-nos com a fidelidade no ordinário. Deixemos que Deus nos conceda a graça do extraordinário.

Retirada de Devocionais Para Todas as Estações (Editora Ultimato, 2009).

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Assim como nós perdoamos

A MESMA coisa acontece quando entra em jogo o nosso perdão em relação aos outros, embora em parte seja bem diferente. É a mesma coisa porque, em ambos os casos, perdoar não é o mesmo que desculpar. Muitas pessoas aparentemente acham que é. Elas acham que se você pedir que perdoem alguém que as trapaceou ou ameaçou, na verdade, estarão fazendo de conta que não houve trapaça ou ameaça alguma. Nesse caso, não haveria nada a se perdoar. E continuam argumentando: “Mas você não está entendendo. O homem quebrou uma promessa das mais solenes”. É isso mesmo; é exatamente esse tipo de coisa que você está precisando aprender a perdoar. (Isso não quer dizer que você precisa necessariamente acreditar na próxima promessa dessa pessoa. Significa apenas que você deve empreender todos os esforços possíveis para matar qualquer ressentimento que possa carregar no coração – qualquer desejo de humilhar ou machucar o outro, ou de lhe dar o troco.) Essa é a grande diferença quando você pede o perdão de Deus. No nosso caso, é muito fácil aceitarmos desculpas; no dos outros, não conseguimos aceitá-las com tanta facilidade.

– de The Weight of Glory [Peso de Glória]
Retirado de Um Ano com C. S. Lewis (Editora Ultimato, 2005).

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

O aprendizado como vocação

A EDUCAÇÃO, os talentos e as circunstâncias de uma pessoa são normalmente indicadores aceitáveis da sua vocação. Se os nossos pais nos mandaram estudar em Oxford e o nosso país nos deu a chance de continuar ali, é uma evidência de primeira mão de que, em todos os casos, a vida que melhor podemos orientar para a glória de Deus no momento é aquela voltada ao aprendizado. O que quero dizer com orientar a vida para a glória de Deus não é, de forma alguma, tentar fazer com que as nossas investigações intelectuais redundem em conclusões edificantes. Como diria Bacon, isso seria oferecer ao autor da verdade o sacrifício sujo de uma mentira. Estou falando da busca do conhecimento e da beleza, em um certo sentido, por si mesmos, mas, em outro, em relação a Deus. Há um gosto natural na mente humana por coisas assim e, Deus certamente não cria nenhum gosto em vão. Por isso somos plenamente capazes de buscar o conhecimento e a beleza por nós mesmos, porque agindo assim estaremos avançando na nossa própria visão de Deus ou então ajudando os outros a vislumbrá-la por si mesmos. A humildade, não menos do que o apetite, nos encoraja a nos concentrar no conhecimento ou na beleza pura e simples, sem nos preocupar tanto com a sua relevância última na visão de Deus. Quem sabe essa relevância não seja para nós, mas para pessoas melhores do que nós – aqueles que vêm depois de nós e encontram o significado espiritual daquilo que nós escavamos em obediência cega e humilde à nossa vocação. [...] A vida intelectual não é o único caminho para Deus, nem mesmo o mais seguro, mas nós a vemos como um caminho, e talvez seja o caminho indicado para nós.

– de The Weight of Glory [Peso de Glória]
1953 The Silver Chair [A Cadeira de Prata, quarto volume da série As Crônicas de
Nárnia] é publicado pela Geoffrey Bles, Londres.
Retirado de Um Ano com C. S. Lewis (Editora Ultimato, 2005).

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

As exigências da religião: fazer tudo para a glória de Deus

É POR UMA razão bem diferente que a religião não pode ocupar a totalidade da vida no sentido de excluir todas as nossas atividades naturais. É claro que em certo sentido ela deve ocupar a nossa vida toda. Não há dúvida quanto ao compromisso que há entre as exigências de Deus e as da cultura, ou da política, ou de qualquer outra coisa. A exigência de Deus é infinita e inexorável. Você pode até recusá-la, ou começar a tentar aceitá-la. Não há meio-termo. Entretanto, em vez disso, está claro que o cristianismo não exclui nenhuma das atividades humanas ordinárias. Paulo recomenda às pessoas que continuem nos seus empregos. Ele até assume que os cristãos podem freqüentar festas noturnas; e pior, festas oferecidas por pagãos. Nosso Senhor participou de uma festa de casamento e até providenciou o milagre do vinho. O conhecimento e as artes floresceram sob a égide da sua Igreja, e ao longo da maior parte das eras cristãs. É claro que a solução desse paradoxo é bastante conhecida: “Quer comais, quer bebais ou façais qualquer outra coisa, faça tudo para a glória de Deus.”
Todas as nossas atividades simplesmente naturais – até mesmo a mais humilde de todas –, serão aceitáveis se forem ofertadas a Deus, e todas elas, até a mais nobre, serão pecaminosas se não forem ofertadas a Deus. O cristianismo não apenas substitui a nossa vida natural por uma nova; ele é, antes, uma nova organização que explora esses materiais naturais para os seus próprios fins sobrenaturais.

– de The Weight of Glory [Peso de Glória]
1954 The Horse and His Boy [O Cavalo e o Menino, quinto volume da série As Crônicas de Nárnia] é publicado pela Geoffrey Bles, Londres.
Retirado de Um Ano com C. S. Lewis (Editora Ultimato, 2005).